quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Peões em cena


 A intensa mobilização operária do ABC paulista, no fim da década de 1970 ecomeço da écada de 1980, foi amplamente apoiada, no plano cultural, por numerosos artistas de destaque, que protagonizaram combinações de showcom manifestação política memoráveis.
Mescla entre cultura e a mobilização deu origem ao grupo Forja - Foto: Divulgação
Mas havia também operários e militantes sindicais envolvidos com a cultura do movimento das greves metalúrgicas.
Criado em 1979, o Grupo Forja foi desde o começo uma iniciativa tocada pelos próprios trabalhadores, integrantes do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, que criavam os textos de maneira coletiva e atuavam eles mesmos nas encenações. Os temas abrangiam os assuntos mais candentes das batalhas sindicais e políticas contra a ditadura civil-militar.
Para falar sobre a experiência do Grupo Forja, que existiu até 1994, o Brasil de Fato entrevistou o diretor o Tin Urbinatti, que escreveu o livro Peões em Cena: Grupo de Teatro Forja (Ed. Hucitec), lançado em São Paulo, dia 29 de agosto.

Brasil de Fato – Na época em que você conheceu os operários que constituiriam o Grupo Forja, qual era seu envolvimento com os grupos de teatro de trabalhadores?
Tin Urbinatti – Em 1977, quando terminei a Universidade de São Paulo (USP), eu era articulista do jornal Movimento, que apoiou as candidaturas populares de Aurélio Peres e de Irma Passoni, candidatos à época pelo MDB [Movimento Democrático Brasileiro]. Eu fui chamado para ajudar no comitê, para auxiliar o encaminhamento da campanha. Conheci um grupo de teatro que ia fazer a campanha de Santo Dias da Silva [o grupo de Santo, a Chapa 3, de oposição sindical, procurava eleger-se como nova diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo]. [Como parte da campanha sindical] escrevi um texto, chamado O Engana Trouxa Tá Caindo, que foi encenado e apresentado na Vila das Mercês.

Como foi o surgimento do Forja?
A classe operária de São Bernardo do Campo estava prenhe de gás, de acúmulo de experiência de lutas no interior das fábricas. Nesse bojo, surge um grupo de metalúrgicos, ligados à Comissão de Salário, que já tinham brincado com teatro e viram a encenação de O Engana Trouxa Tá Caindo. E este grupo entrou em contato comigo, solicitando que eu escrevesse um texto para que eles montassem, por conta da campanha salarial deles; o eixo seria o contrato coletivo de trabalho. Fui ao sindicato dos metalúrgicos, pedi que convocassem pessoas que consideravam importantes e fiz uma entrevista com eles sobre o que significava o contrato coletivo de trabalho. Então escrevi o texto. Chamava-se Contrato Coletivo. Eles encenaram e me convidaram para a estreia. Fiquei encantado com o trabalho.

Quando foi a primeira peça do Grupo Forja?
O embrião do grupo, encenando aquele primeiro texto que escrevi, chamava-se Turma do João Ferrador. Em 1979, constitui-se o Forja e a primeira peça que o grupo escreveu coletivamente foi Pensão Liberdade, cujo texto foi encenado no Brasil inteiro.

Quais foram as necessidades que você, como artista, sentiu com relação à formação daquele grupo de operários, que tinham interesse cultural, mas não tinham formação específica?
Eu tive um trabalho durante praticamente o ano inteiro de 1979, no que diz respeito a coordenar dramaturgia e a outra parte, eminentemente prática, de interpretação teatral. Eu dava exercícios de interpretação, de expressão vocal – tudo o que é necessário para o ator. Tive aula com Eugênio Kusnet, que foi meu grande mestre. Fui formado em método de ator com ele, então tinha conhecimento razoável de Stanislavski para poder dar a eles essa base.

A partir daí, o trabalho deslanchou?
Deslanchou, a ponto de criarmos outros grupos em São Bernardo. Eles começaram a ir aos outros bairros e passavam os exercícios para os grupos das comunidades. Daí saíram pelo menos oito grupos de teatro, como “filhotes” do Forja, na região do ABC. A gente destacava um ou dois integrantes do grupo para acompanhar e dar instruções do fazer teatral, durante o processo de formação desses novos coletivos.

Essa história lembra a do Teatro de Arena ou do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da Une), que também foram propagadores de outros coletivos. Esse é um dos traços marcantes da história do teatro de agitação e propaganda (agitprop). Vocês tinham conhecimento dessas experiências?
Nunca usei o termo agitprop lá, porque não interessava ficar fazendo discurso acadêmico ou contando história. Não interessava falar difícil. Quanto mais simples eu pudesse me comunicar, mais fácil seria o trabalho e a compreensão.

Mas você tinha presente a experiência do CPC?
Sem dúvida, mas procurando recriá-la em uma outra esfera, não meramente em uma esfera panfletária. O que a gente podia levantar como discussão crítica, e não de maneira impositiva, a gente levantou. Mas havia assuntos como, por exemplo, a ditadura militar, que a gente tinha que dar um pau mesmo, e a gente dava. Nesse caso, era sectarismo puro. Aí não tinha meio tom na representação. Mas a memória do CPC – e mesmo a do teatro anarquista do começo do século, sobre o qual eu tinha lido também – está na minha base de formação, não de uma forma acadêmica, mas na práxis do fazer teatral.

Naquela época, existiam alguns grupos de teatro atuando na periferia, havia alguns anos. Vocês tinham algum tipo de intercâmbio com esses coletivos?
Cruzávamos de vez em quando com eles. Eu e o César Vieira (do Teatro União e Olho Vivo) sempre mantivemos um contato muito estreito, desde a USP, quando tínhamos o grupo das Ciências Sociais. Também com o Celso Frateschi (então integrante do Núcleo Independente) e com o grupo Galo de Briga. Mas, sem dúvida, o trabalho do Forja acontecia mais entre os trabalhadores. A primeira vez que o Grupo Forja foi chamado a participar da Federação Andreense de Teatro Amador, o pessoal ficou apavorado, porque não dava tempo! Eles tinham que trabalhar na fábrica, o dia inteiro, tinham as atividades do bairro para fazer, como campanha sindical, e de repente tinham que ir a uma reunião, em uma quarta-feira à noite, para discutir a Federação de Teatro Amador! Além disso, às vezes, a discussão de uma federação de teatro amador era uma discussão muito aquém da que eles tinham no grupo de teatro ou no sindicato.

Como foi o processo de desenvolvimento da estética do Grupo Forja?
Em primeiro lugar estava a necessidade. Cada conjuntura exigiu uma resposta artística. O primeiro momento foi de conhecimento, reconhecimento e consolidação do grupo, em 1979. Fizemos a peça Pensão Liberdade e todos nós conhecemos, discutimos, estudamos política, economia, antropologia, tudo com textos muito ligados aos estudos da classe operária, de autores como Octávio Ianni, Florestan Fernandes, Luís Flávio Rainho, além de textos de teatro, de autores como Plínio Marcos e Dias Gomes. Quando ocorreu a prisão da diretoria do sindicato, em 1980, a Lei de Segurança Nacional virou o grande problema para todo mundo - porque a ditadura se baseava na Lei de Segurança Nacional para fazer o que fez, como intervir no sindicato e prender dirigentes. Então nós inventamos de fazer um teatro que colocasse em xeque essa lei. Criamos um teatro de rua, porque o sindicato estava sob intervenção; fizemos A Greve de 80 e o Julgamento Popular da Lei de Segurança Nacional. Enfrentamos várias dificuldades, porque era teatro de rua e a gente usava texto; percebemos que texto para 30 mil, 40 mil pessoas, no estádio da Vila Euclides, não era viável. Então abolimos a palavra e usamos apenas o corpo, gestos, mímica, cenário e figurino grandiosos para comunicar a ideia à distância. Foi assim que fizemos O Robô que Virou Peão, Brasil S.A., Diretas, volver! e Boi Constituinte – cada uma dessas peças de acordo com a conjuntura econômica e política que o Brasil atravessava.

E quanto ao Teatro de Seminário?
Também surge de uma necessidade da diretoria do sindicato de fazer uma discussão mais aprofundada, técnica, de problemas específicos, como comissão de salário, hora extra. Pensamos em como colocar isso de uma forma lúdica, como fazer o teatro contribuir com isso. Então partimos para o teatro de seminário, que é uma espécie de teatro invisível, dialogando um pouco com o teatro que o Augusto Boal andou fazendo. É uma coisa brechtiana. A pessoa não sabe que está envolvida em uma situação teatral.

Naquele momento o PT estava se constituindo. Qual foi a relação do Forja com isso?
Vários integrantes do Forja carregaram piano lá. Isso aparece na entrevista que faço com a Zezé (Maria José de Carvalho Elesbão) e o Edu (Eduardo Moreira), no livro; a Zezé conta como foi a participação dela, intensíssima, no processo de constituição do PT, do qual ela foi uma das primeiras filiadas. O grupo participou intensamente. Aliás, teve vários militantes do PT que eram oriundos do grupo de teatro e o deixaram para militar no partido. Não éramos todos filiados ao PT, mas boa parte sim. Eu mesmo carreguei piano lá muito tempo.

E o afastamento do sindicato?
O grupo se retirou do sindicato em solidariedade a mim, depois da demissão. Eles tentaram conversar com a diretoria, chamaram o Lula para uma reunião, o Lula disse que ia conversar com a diretoria para rever a posição. Mas não aconteceu e o grupo se retirou em massa do sindicato, passando a atuar nos espaços que a Prefeitura de São Bernardo cedeu. Foi um momento barra pesada, porque sem um local fixo de trabalho, sem infraestrutura, ficou difícil. Mas continuamos de 1986 até 1994, com muito mais dificuldade e de forma meio nômade: fazíamos um mês em um lugar, aí a Prefeitura pedia para sair e oferecia outro espaço, e assim por diante. O grupo deixou de ter uma referência fixa. A sede, até então, era no sindicato.

Com a saída, o público continuou sendo majoritariamente operário?
Começou a mesclar, porque não tinha mais a penetração na fábrica. Antes contávamos com o boletim do sindicato, que fazia a convocação; era uma comunicação direta com o interior da fábrica. A partir daí começou a não ter mais isso. Só quem era do grupo e estava dentro da fábrica trazia os colegas, mas claro que muito limitadamente. Por isso fomos perdendo força.

Como você vê a cultura – e, mais especificamente, o teatro – de esquerda hoje, em uma fase de refluxo da classe trabalhadora? Há relação com o que vocês fizeram naquela época?
A relação é mínima, porque as pessoas nem tinham mais conhecimento do Forja. Escrevi o livro justamente para colocar na pauta do dia que já houve um grupo de operários atores – o que é muito diferente de um ex-aluno da Escola de Arte Dramática ou da Escola Livre de Teatro fazer teatro discutindo as causas operárias. É um pessoal de classe média, normalmente oriundo de escolas de teatro, que discute as questões políticas e históricas do Brasil. A discussão da questão da luta de classes no Brasil está colocada. Há um ressoar do que foi o movimento artístico da década de 1960, via CPC, Teatro Paulista do Estudante, Teatro de Arena, nesses grupos que estão se organizando. Mas é sempre o homem de classe média discutindo, como foi o CPC. A diferença entre o CPC e o Forja é que o CPC falava para os operários e, no Forja, era operário falando para operário. Não que seja algum demérito, ao contrário; esse teatro de classe média de hoje, que fala sobre questões do trabalhador, é de fundamental importância. Do ano de 2000 para frente, sobretudo nos últimos quatro anos, tem crescido muito essa discussão. Só espero que o combustível não seja a verba do [Programa Municipal de] Fomento [ao Teatro, criado em 2002, em São Paulo]. Espero que o combustível seja a ideologia mesmo.

Por Eduardo Campos de Lima,
Fonte: Brasil de Fato

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