sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A última entrevista de Jaime C. Samarone e outras histórias


Foto: Galaxies and Hurricanes/CC
Não era a espessa camada de pó sobre a mobília. Não era o gato que lambia suas feridas sobre uma almofada vermelha em um dos cantos da sala. Nem mesmo a adolescente estrábica com um vestido florido e feio sentada no sofá à minha frente. Era o silêncio o que mais chamava a atenção naquela sala. Pelo menos até a menina começar a dobrar a cabeça de um lado para o outro sem qualquer propósito aparente. Ou até alguém gritar na rua que macarrão não procriava. Aí ele chegou.
Vestia um robe de algodão amarelo e calças de pijama de flanela com listras azuis e brancas. Nos pés, chinelos de dedo de borracha, escolha acertada para quem parecia não cortar as unhas dos pés há dois anos. O cabelo estava molhado e a pele avermelhada coberta de talco.
Buscava aquela entrevista sem sucesso há tempos. Havia sempre uma nova viagem, um novo projeto, uma nova esposa ou um novo transplante. E o calor dos meses pares e o frio dos meses ímpares. E a descoberta de um novo continente escondido na represa de Guarapiranga. Mas a perseverança paga. Ou empresta.
A primeira coisa que perguntei, logo após nos cumprimentarmos – ele com um aperto de mão mole, sem firmeza, sem vontade – e nos sentarmos, foi o que queria dizer a letra “c” abreviada em seu nome.
Ele acendeu um cigarro e coçou a orelha com o dedo mindinho com uma expressão de prazer, como se fosse espirrar. Depois analisou o resultado da limpeza, conferindo a quantidade de sabe lá o que trazia sob a unha. Cheirou e limpou na perna do pijama.
– Isso eu não conto pra ninguém, seu bosta! – respondeu, ainda com um sorriso.
Não é que estivesse intimidado, nem que não pudesse estar. Afinal, me encontrava diante de Jaime C. Samarone. Apenas não sabia ao certo o que fazer.
Saboreando o constrangimento, o entrevistado arranhou a garganta, puxando o catarro do fundo do peito e o engolindo.
– Outra dúvida?
– Queria entender o processo criativo... – arrisquei, tentando me recompor.
– Porra! – gritou. – Tá de sacanagem, né? Que merda é essa de processo criativo? Comigo nunca teve dessas maricagens, não. Quer fazer? Faz! Não pensa muito. Se enrolar azeda e fede mais que cueca de moleque.
– Mas sua obra...
– Que obra? Eu nunca estive no ramo da construção civil.
– Mas a arte...
– Olha só, vamos combinar: você não fala mais bobagem e eu não te avacalho, certo?
– E sobre o que o senhor gostaria de falar?
Seus lábios dividiram o rosto em dois hemisférios, criando um sorriso insano, confirmando a suspeita de que os dois dentes incisivos centrais superiores eram descomunalmente desproporcionais aos restantes. Eram imensos. Eram amarelos. E podres.
– Quero falar sobre prisão de ventre. Mas vou te dar a opção de falarmos sobre diarreia. Eu vou comentar episódios cotidianos corriqueiros, como o menino aqui do apartamento em frente que volta e meia volta cagado da rua. A mãe grita lá, “Ah, Juninho, se cagou de novo?”, e começa a choradeira do menino, que aliás já tem 32 anos. O corredor fica empesteado, né?
– E o que isso...
– Então, você põe aí no papel que eu estou na verdade falando da condição humana. Se não estamos com medo, paralisados de terror, constipados, estamos fazendo merda. Vai pegar bem com teu público.
– Fico tentado a …
– Não é o caso de apelar para a minha religiosidade...
E a voz dele foi morrendo, morrendo e morreu. O silêncio retornou à medida que suas pálpebras enrugadas cerraram. Estranhamente, o ronco não veio.
O gato coberto de chagas se aproximou e começou a se esfregar em minhas pernas. A menina vesga sorriu e eu achei que era pra mim. Uma mulher gritou de algum lugar de dentro da casa que o almoço estava pronto.
Ele acordou e ficou confuso por alguns instantes, como se não me reconhecesse e não soubesse onde estava ou o que estava fazendo ali. Depois se aquietou e abriu um sorriso triste e cansado.
– Você vai me destruir, não vai? Foi naquele exato momento que descobri que eu não valia um centavo.
*
Correu pelo quintal determinado a manter-se na frente do irmão em tudo, mesmo sendo um ano mais novo. Ali no fundo, pelo barulho, a arapuca funcionara e um passarinho lutava contra as paredes de papelão em busca da liberdade.
Na velocidade não conseguiria o primeiro lugar, pois o irmão tinha pernas mais compridas. Era o caso de apelar para a inteligência. Ou para a trapaça, que nessa idade é quase a mesma coisa. E passou o pé no irmão, que capotou espetacularmente, tendo o corpo aparado pelo queixo ao atingir o chão.
Quando um menino deixa de ser arteiro para se transformar em um filho da puta? Quando cresce? Quando passa a sentir prazer com isso? Quando transforma isso em um meio de vida? De qualquer maneira, não era algo que se iria descobrir naquele momento. A seu favor, temos que considerar que não buscava prazer no ato, mas no resultado. Os meios sórdidos foram apenas isso, meios.
O sucesso pode ser um problema. Algumas pessoas simplesmente não sabem o que fazer quando o atingem. Pois ele havia conseguido chegar à armadilha antes do irmão e estava agora ali, diante da caixa de papelão sem saber o que fazer, pois que qualquer descuido significaria a fuga do prisioneiro.
Titubeou, dançou – versão do ditado – , significou um tapa que o fez rodar sobre seu próprio eixo. E o primogênito não se fez Caim por conta da mãe que o interrompeu. Queixas brotaram, lágrimas voaram, dedos se apontaram e, por fim, o dilema de Salomão. Se não dividirem... Assim, a contragosto, o irmão recolheu o passarinho da caixa de sapato perfurada e depositou o animal nas mãos do caçula que sorriu iluminado e esmagou o pobre animal entre os dedos.
Durante muitos anos o irmão mais velho achou que, excitado, o pequeno tinha exagerado na pressão. Acreditava que a morte era um acidente. Mas alguma coisa lhe ocorreu anos depois, no meio da noite, e ele se deu conta de que Jaime era mesmo um filho da puta.
Ana tentava concentrar-se na televisão, alguma coisa ali sobre férias na Tailândia, destino de jovens aventureiros. Mas Romeu insistia em acariciar sua perna esquerda, entendendo o olhar “me deixa em paz” com o olhar “continua que está bom”. Com um sorriso forçado, ela cobriu a perna.
Romeu entendeu. Por três minutos. Depois afastou o lençol e voltou a acariciá- la.
– Você não vai me deixar em paz, né? – perguntou ela com o cenho franzido. Romeu sorriu e continuou a acariciar a perna da moça.
– Fica quietinha que eu estou pagando por isso.

Autor:Aldo Gama
Fonte: Brasil de Fato

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Dor e memória pelos desaparecidos da ditadura no romance de Bernardo Kucinski



Foto de Paulo Pepe ©
O recém-lançado livro do jornalista e escritor Bernardo Kucinski retrata a busca de um pai por sua filha, que foi vítima da ditadura civil-militar brasileira no ano de 1974. Sob o título K., o romance conta através da ficção uma história que se baseou na mais crua realidade vivida pela família Kucinski.
O pai do autor, chamado de K. na obra, é o protagonista que após a prisão e desaparecimento de sua filha, Ana Rosa Kucinski Silva, sai em busca de seu paradeiro. Ana era militante da resistência à ditadura pela Aliança Libertadora Nacional e, também, professora da Universidade de São Paulo (USP).
Nas palavras da historiadora e professora da USP, Maria Victória de Mesquita Benevides, “este livro não veio para registrar fatos do terrorismo do Estado, mas, sim, para nos colocar dentro da dor e da memória”. Ela acrescenta que esta foi a obra sobre o período da ditadura que mais a emocionou, provocando sentimentos de “compaixão” e de “raiva e indignação”, pois “se a dor suprema pertence ao pai, a sua tragédia é a de todos”.
O livro possui 177 páginas e é publicado pela Editora Expressão Popular, no valor de R$ 15. Ele pode ser adquirido através da livraria virtual da editora no site www.expressaopopular.com.br.


Por Vivian Fernandes
Fonte: Brasil de fato