quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Peões em cena


 A intensa mobilização operária do ABC paulista, no fim da década de 1970 ecomeço da écada de 1980, foi amplamente apoiada, no plano cultural, por numerosos artistas de destaque, que protagonizaram combinações de showcom manifestação política memoráveis.
Mescla entre cultura e a mobilização deu origem ao grupo Forja - Foto: Divulgação
Mas havia também operários e militantes sindicais envolvidos com a cultura do movimento das greves metalúrgicas.
Criado em 1979, o Grupo Forja foi desde o começo uma iniciativa tocada pelos próprios trabalhadores, integrantes do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, que criavam os textos de maneira coletiva e atuavam eles mesmos nas encenações. Os temas abrangiam os assuntos mais candentes das batalhas sindicais e políticas contra a ditadura civil-militar.
Para falar sobre a experiência do Grupo Forja, que existiu até 1994, o Brasil de Fato entrevistou o diretor o Tin Urbinatti, que escreveu o livro Peões em Cena: Grupo de Teatro Forja (Ed. Hucitec), lançado em São Paulo, dia 29 de agosto.

Brasil de Fato – Na época em que você conheceu os operários que constituiriam o Grupo Forja, qual era seu envolvimento com os grupos de teatro de trabalhadores?
Tin Urbinatti – Em 1977, quando terminei a Universidade de São Paulo (USP), eu era articulista do jornal Movimento, que apoiou as candidaturas populares de Aurélio Peres e de Irma Passoni, candidatos à época pelo MDB [Movimento Democrático Brasileiro]. Eu fui chamado para ajudar no comitê, para auxiliar o encaminhamento da campanha. Conheci um grupo de teatro que ia fazer a campanha de Santo Dias da Silva [o grupo de Santo, a Chapa 3, de oposição sindical, procurava eleger-se como nova diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo]. [Como parte da campanha sindical] escrevi um texto, chamado O Engana Trouxa Tá Caindo, que foi encenado e apresentado na Vila das Mercês.

Como foi o surgimento do Forja?
A classe operária de São Bernardo do Campo estava prenhe de gás, de acúmulo de experiência de lutas no interior das fábricas. Nesse bojo, surge um grupo de metalúrgicos, ligados à Comissão de Salário, que já tinham brincado com teatro e viram a encenação de O Engana Trouxa Tá Caindo. E este grupo entrou em contato comigo, solicitando que eu escrevesse um texto para que eles montassem, por conta da campanha salarial deles; o eixo seria o contrato coletivo de trabalho. Fui ao sindicato dos metalúrgicos, pedi que convocassem pessoas que consideravam importantes e fiz uma entrevista com eles sobre o que significava o contrato coletivo de trabalho. Então escrevi o texto. Chamava-se Contrato Coletivo. Eles encenaram e me convidaram para a estreia. Fiquei encantado com o trabalho.

Quando foi a primeira peça do Grupo Forja?
O embrião do grupo, encenando aquele primeiro texto que escrevi, chamava-se Turma do João Ferrador. Em 1979, constitui-se o Forja e a primeira peça que o grupo escreveu coletivamente foi Pensão Liberdade, cujo texto foi encenado no Brasil inteiro.

Quais foram as necessidades que você, como artista, sentiu com relação à formação daquele grupo de operários, que tinham interesse cultural, mas não tinham formação específica?
Eu tive um trabalho durante praticamente o ano inteiro de 1979, no que diz respeito a coordenar dramaturgia e a outra parte, eminentemente prática, de interpretação teatral. Eu dava exercícios de interpretação, de expressão vocal – tudo o que é necessário para o ator. Tive aula com Eugênio Kusnet, que foi meu grande mestre. Fui formado em método de ator com ele, então tinha conhecimento razoável de Stanislavski para poder dar a eles essa base.

A partir daí, o trabalho deslanchou?
Deslanchou, a ponto de criarmos outros grupos em São Bernardo. Eles começaram a ir aos outros bairros e passavam os exercícios para os grupos das comunidades. Daí saíram pelo menos oito grupos de teatro, como “filhotes” do Forja, na região do ABC. A gente destacava um ou dois integrantes do grupo para acompanhar e dar instruções do fazer teatral, durante o processo de formação desses novos coletivos.

Essa história lembra a do Teatro de Arena ou do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da Une), que também foram propagadores de outros coletivos. Esse é um dos traços marcantes da história do teatro de agitação e propaganda (agitprop). Vocês tinham conhecimento dessas experiências?
Nunca usei o termo agitprop lá, porque não interessava ficar fazendo discurso acadêmico ou contando história. Não interessava falar difícil. Quanto mais simples eu pudesse me comunicar, mais fácil seria o trabalho e a compreensão.

Mas você tinha presente a experiência do CPC?
Sem dúvida, mas procurando recriá-la em uma outra esfera, não meramente em uma esfera panfletária. O que a gente podia levantar como discussão crítica, e não de maneira impositiva, a gente levantou. Mas havia assuntos como, por exemplo, a ditadura militar, que a gente tinha que dar um pau mesmo, e a gente dava. Nesse caso, era sectarismo puro. Aí não tinha meio tom na representação. Mas a memória do CPC – e mesmo a do teatro anarquista do começo do século, sobre o qual eu tinha lido também – está na minha base de formação, não de uma forma acadêmica, mas na práxis do fazer teatral.

Naquela época, existiam alguns grupos de teatro atuando na periferia, havia alguns anos. Vocês tinham algum tipo de intercâmbio com esses coletivos?
Cruzávamos de vez em quando com eles. Eu e o César Vieira (do Teatro União e Olho Vivo) sempre mantivemos um contato muito estreito, desde a USP, quando tínhamos o grupo das Ciências Sociais. Também com o Celso Frateschi (então integrante do Núcleo Independente) e com o grupo Galo de Briga. Mas, sem dúvida, o trabalho do Forja acontecia mais entre os trabalhadores. A primeira vez que o Grupo Forja foi chamado a participar da Federação Andreense de Teatro Amador, o pessoal ficou apavorado, porque não dava tempo! Eles tinham que trabalhar na fábrica, o dia inteiro, tinham as atividades do bairro para fazer, como campanha sindical, e de repente tinham que ir a uma reunião, em uma quarta-feira à noite, para discutir a Federação de Teatro Amador! Além disso, às vezes, a discussão de uma federação de teatro amador era uma discussão muito aquém da que eles tinham no grupo de teatro ou no sindicato.

Como foi o processo de desenvolvimento da estética do Grupo Forja?
Em primeiro lugar estava a necessidade. Cada conjuntura exigiu uma resposta artística. O primeiro momento foi de conhecimento, reconhecimento e consolidação do grupo, em 1979. Fizemos a peça Pensão Liberdade e todos nós conhecemos, discutimos, estudamos política, economia, antropologia, tudo com textos muito ligados aos estudos da classe operária, de autores como Octávio Ianni, Florestan Fernandes, Luís Flávio Rainho, além de textos de teatro, de autores como Plínio Marcos e Dias Gomes. Quando ocorreu a prisão da diretoria do sindicato, em 1980, a Lei de Segurança Nacional virou o grande problema para todo mundo - porque a ditadura se baseava na Lei de Segurança Nacional para fazer o que fez, como intervir no sindicato e prender dirigentes. Então nós inventamos de fazer um teatro que colocasse em xeque essa lei. Criamos um teatro de rua, porque o sindicato estava sob intervenção; fizemos A Greve de 80 e o Julgamento Popular da Lei de Segurança Nacional. Enfrentamos várias dificuldades, porque era teatro de rua e a gente usava texto; percebemos que texto para 30 mil, 40 mil pessoas, no estádio da Vila Euclides, não era viável. Então abolimos a palavra e usamos apenas o corpo, gestos, mímica, cenário e figurino grandiosos para comunicar a ideia à distância. Foi assim que fizemos O Robô que Virou Peão, Brasil S.A., Diretas, volver! e Boi Constituinte – cada uma dessas peças de acordo com a conjuntura econômica e política que o Brasil atravessava.

E quanto ao Teatro de Seminário?
Também surge de uma necessidade da diretoria do sindicato de fazer uma discussão mais aprofundada, técnica, de problemas específicos, como comissão de salário, hora extra. Pensamos em como colocar isso de uma forma lúdica, como fazer o teatro contribuir com isso. Então partimos para o teatro de seminário, que é uma espécie de teatro invisível, dialogando um pouco com o teatro que o Augusto Boal andou fazendo. É uma coisa brechtiana. A pessoa não sabe que está envolvida em uma situação teatral.

Naquele momento o PT estava se constituindo. Qual foi a relação do Forja com isso?
Vários integrantes do Forja carregaram piano lá. Isso aparece na entrevista que faço com a Zezé (Maria José de Carvalho Elesbão) e o Edu (Eduardo Moreira), no livro; a Zezé conta como foi a participação dela, intensíssima, no processo de constituição do PT, do qual ela foi uma das primeiras filiadas. O grupo participou intensamente. Aliás, teve vários militantes do PT que eram oriundos do grupo de teatro e o deixaram para militar no partido. Não éramos todos filiados ao PT, mas boa parte sim. Eu mesmo carreguei piano lá muito tempo.

E o afastamento do sindicato?
O grupo se retirou do sindicato em solidariedade a mim, depois da demissão. Eles tentaram conversar com a diretoria, chamaram o Lula para uma reunião, o Lula disse que ia conversar com a diretoria para rever a posição. Mas não aconteceu e o grupo se retirou em massa do sindicato, passando a atuar nos espaços que a Prefeitura de São Bernardo cedeu. Foi um momento barra pesada, porque sem um local fixo de trabalho, sem infraestrutura, ficou difícil. Mas continuamos de 1986 até 1994, com muito mais dificuldade e de forma meio nômade: fazíamos um mês em um lugar, aí a Prefeitura pedia para sair e oferecia outro espaço, e assim por diante. O grupo deixou de ter uma referência fixa. A sede, até então, era no sindicato.

Com a saída, o público continuou sendo majoritariamente operário?
Começou a mesclar, porque não tinha mais a penetração na fábrica. Antes contávamos com o boletim do sindicato, que fazia a convocação; era uma comunicação direta com o interior da fábrica. A partir daí começou a não ter mais isso. Só quem era do grupo e estava dentro da fábrica trazia os colegas, mas claro que muito limitadamente. Por isso fomos perdendo força.

Como você vê a cultura – e, mais especificamente, o teatro – de esquerda hoje, em uma fase de refluxo da classe trabalhadora? Há relação com o que vocês fizeram naquela época?
A relação é mínima, porque as pessoas nem tinham mais conhecimento do Forja. Escrevi o livro justamente para colocar na pauta do dia que já houve um grupo de operários atores – o que é muito diferente de um ex-aluno da Escola de Arte Dramática ou da Escola Livre de Teatro fazer teatro discutindo as causas operárias. É um pessoal de classe média, normalmente oriundo de escolas de teatro, que discute as questões políticas e históricas do Brasil. A discussão da questão da luta de classes no Brasil está colocada. Há um ressoar do que foi o movimento artístico da década de 1960, via CPC, Teatro Paulista do Estudante, Teatro de Arena, nesses grupos que estão se organizando. Mas é sempre o homem de classe média discutindo, como foi o CPC. A diferença entre o CPC e o Forja é que o CPC falava para os operários e, no Forja, era operário falando para operário. Não que seja algum demérito, ao contrário; esse teatro de classe média de hoje, que fala sobre questões do trabalhador, é de fundamental importância. Do ano de 2000 para frente, sobretudo nos últimos quatro anos, tem crescido muito essa discussão. Só espero que o combustível não seja a verba do [Programa Municipal de] Fomento [ao Teatro, criado em 2002, em São Paulo]. Espero que o combustível seja a ideologia mesmo.

Por Eduardo Campos de Lima,
Fonte: Brasil de Fato

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Marcelo Yuka comanda show no Rock in Rio ostentando bandeira do MST



Por detrás da bandeira do MST, o músico e ex-baterista da banda O Rappa, Marcelo Yuka, abria a rodada de shows deste sábado (24/09) no Rock in Rio, no Palco Sunset, no segundo dia de festival.
Acompanhado das cantoras Cibelle, Karina Buhr e Amora Pêra, que dividiram o palco com ele ao longo da apresentação, Yuka não deixou de politizar o que é considerado um dos maiores festivais do mundo.
Sob o som das músicas “Tribunal de rua”, “Baía de Guantánamo”, “Ninguém regula a América” e “ A carne” temas como a violência policial, críticas às políticas externas norteamericanas e questões ligadas ao racismo tampouco foram deixadas de lado.
Mais para o final, o músico ressaltou a questão da violência nos morros carioca. “A gente precisa se ligar. Não acredito em paz armada. Como artista, acredito na paz. Esse negócio de UPP, tô fora”,acentuou.
Fonte: MST

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O passado como fuga e aprendizado


Cena do filme Meia-noite em Paris,
do diretor estadunidense Woody Allen - Foto: divulgação
O filme Meia-noite em Paris, a mais recente produção do diretor estadunidense Woody Allen, em cartaz nos cinemas desde junho, tem se mostrado um grande sucesso de público e de crítica. Allen, hoje com 75 anos de idade, desde que iniciou a sua carreira como diretor de cinema – antes foi comediante em pequenos bares nos Estados Unidos – tem conseguido realizar quase um filme por ano, contando com quase 50 filmes já feitos.
Uma grande proeza se levarmos em conta que seus filmes não seguem o modelo das produções culturais de Hollywood: grande orçamento, grande publicidade, um roteiro muito pobre e um final feliz. Ele consegue de forma quase sempre brilhante aliar uma boa narrativa, um ótimo trabalho com atores e atrizes e uma crítica ao modelo de sociedade estadunidense com tons de comédia ou drama.
Paris dos anos de 1920
Ao longo de sua carreira, é recorrente o tema dos conflitos familiares, sobretudo entre casais, em suas mais diversas formas. Em Meia-noite em Paris, o fio narrativo se dá a partir do conflito de jovens estadunidenses prestes a se casarem.
Na produção deste ano, a história se desenrola a partir do drama vivido por Gil Pender, um bem-sucedido roteirista da indústria cinematográfica de Hollywood apaixonado pela cidade de Paris e por sua noiva Inez, que passa férias com ele na cidade francesa. Gil, descontente com seu trabalho, para ele cada vez mais vazio de sentido, está em busca de seu sonho: tornar-se escritor de romances, buscando, com isso, fugir da produção em série de roteiros de filmes enlatados. A necessidade de manter o alto padrão de vida por ele alcançado – e desejado por sua noiva – é um dos nós que o impossibilitam de romper com seu trabalho e com a vida que leva.
Isso se constitui como uma grande contradição para Gil, pois ele também é um amante da tradição clássica da literatura, da música e das artes plásticas que havia na Paris dos anos 1920 e que compunham uma grande efervescência artística. Lá viviam grandes escritores como Scott Fitzgerald, Ernst Hemingway, Gertrude Stein; os três, estadunidenses que migraram para França; André Breton, importante figura do movimento surrealista na literatura; artistas plásticos do calibre de Pablo Picasso, Salvador Dali, Modigliani; cineastas como Luis Buñuel; músicos como Cole Porter, reconhecido compositor de trilhas sonoras de musicais e de produções cinematográficas; entre outros.
É nessa tradição que Gil Pender se inspira para escrever seu romance e fugir do modelo de vida estadunidense (o “american way of life”). É a propósito da escrita de se livro que um dia ele descobre uma espécie de “túnel do tempo” em uma pequena rua de Paris, onde após à meia-noite ele pode voltar à cidade das luzes da década de 1920 e conviver e encontrar com todos os artistas mencionados.
Volta ao passado
A importância de se refletir sobre esse filme vai além de compreender o seu sucesso de bilheteria; está, sobretudo, nas questões que aborda de forma crítica. Uma delas é a tensa relação que Gil mantém com seu sogro – um empresário estadunidense que está em Paris a negócios, defensor de posições conservadoras e reacionárias de grupos de direita dos EUA como, por exemplo, o Tea Party – nos mais diferentes aspectos: políticos, ideológicos, artísticos, sociais etc.
Outro tema brilhantemente abordado é como as relações conjugais são mantidas principalmente pela sua aparência. Isso fica evidente na relação entre Gil e Inez, cujas perspectivas de vida são completamente diferentes, mas que, por estarem noivos, devem levar em frente o relacionamento e perpetuar o modelo estadunidense de família.
A paixão de Gil pela Paris dos anos 1920 traz duas questões a se refletir. A primeira delas é que a partir de seu descontentamento com o presente – do qual ele é um crítico cético – ele irá buscar no passado o seu ideal de vida; a segunda é a relevância da produção cultural e artística de alta qualidade estética produzida nas diferentes épocas.
Com relação ao primeiro aspecto, a volta ao passado se configura primeiramente como fuga, para depois se tornar aprendizado que influenciará sua decisão frente ao presente. O segundo aspecto se vincula ao primeiro, pois a convivência com os que se tornaram grandes artistas do século 20 constitui parte do aprendizado de Gil.
Outro aspecto que merece uma detida reflexão é a decisão que Gil Pender toma, após ter aprendido com a história, com relação ao seu futuro. Estão colocadas para ele a opção de seguir a vida tal como está, trabalhando como roteirista, se casar com Inez e manter as aparências frente à sociedade, ou romper com isso e ficar em Paris, caminhando na chuva, se reinventando como escritor e construindo uma nova vida.

Por Miguel Yoshida
Fonte:Brasil de Fato

Castanhas ao leite



Já da primeira vez, notei que ela vinha acarretada de mágoas no peito e uma história estranha na garganta. A testa retesada de quem não sabe mais o que fazer com a dor. A dor de quem se curvou. O corpo curvado de amor retido. De medo de viver. Um balançar inseguro, típico de quem não vai e não faz se não souber pra onde e o porquê. E foi dar logo de cara comigo, que adoro subverter as pequenas estruturas do dia a dia. Muita sorte ou azar.
Pouco importa. Tanto faz se ela me receia, porque sei que é docemente falsa a sua autossuficiência. E eu subverto. Me desfaço de conceitos para chegar mais perto dela. Esta mulher acaba comigo. Há dois meses que não durmo. Ela fica cravada na minha retina. Tenho mil versões dela na minha cabeça. Ela de biquíni, ela de paletó, ela de jardineira, duas dela, duas dela juntas na cama, ela, ela, ela.
A gente mantém uma relação assim: ela vem vindo pelo corredor, lenta e densa, queimando o ar, e eu vou ficando sem graça. Aí ela chega mais perto, num andar para lá de hesitante, e quando passa por mim diz “oi”. Um “oi” tímido, suave, murmurado. Deus! Que “oi” esta mulher tem! Aí eu respondo, “oi”, embasbacado. Todos os dias digo que de hoje não passa. Que dou um jeito de me avizinhar do seu pescoço. Que descubro que negócio é esse que altera todo o movimento dela. O andar dela. O rebolado dela. Ela.
Imagino os cabelos dela brincando no meu rosto. Que rosto! E o gosto? Quero experimentar o gosto de mulher que ela tem. Fantasio ela de calça de moletom cinza, camiseta azul, meias brancas e chinelos havaianas verdes, de manhã cedinho, bebendo leite ou café na minha cozinha. Ela tem um mistério, uma coisa assim encravada na alma, sabe? E eu sei que parece atrevimento, loucura ou petulância mesmo, mas acho que posso fazê-la sorrir mais largo, mais forte, mais sincero.
Todos os dias espero por ela. Busco disfarçar para que não desconfiem, mas não posso mais. Não suporto mais. Tenho bebido


Mulher de Frente, desenho
a caneta-tinteiro de
Portinari de 1941
 muito, embora já não saia mais à noite. Consegui uma foto dela, de minissaia e blusa preta numa festinha de aniversário da repartição. Bebo em casa sozinho e me entusiasmo com as mãos. Extirpo de mim meu desejo por ela. Não posso mais agir assim, sei bem. Ela de biquíni, ela de paletó, ela de jardineira, duas dela, ela, ela, ela.
Me sinto um pouco rústico por desejá-la e não dividir isso com ela. Gosto tanto das suas coxas. Ficaria o dia inteiro ajoelhado beijando as coxas dela enquanto ela trabalha, enquanto ela estuda, enquanto ela fala ao telefone. Era lá que eu gostaria de estar agora, entre suas coxas quentes e firmes. Coxas cor de castanha.
Tarde destas, quando ela veio, veio de um jeito diferente daquele que ela sempre vinha. Me lançou um olhar penitente e tinha a boca entreaberta. Eu fiquei tenso com o que ela diria. Muita língua e saliva, eu pensava, enquanto meu corpo antecipava o suor. Meu corpo todo propenso ao corpo dela, vontade súbita de tirar a roupa e amá-la ali mesmo, no chão do corredor.
Ela vinha vindo daquele jeito que eu nunca vi ela vir. Jogou para cima de mim um olhar de quem arrisca toda dignidade numa confissão e disse “oi, tudo bem”. Ela meu perguntou se estava “tudo bem”! Quase não acreditei. Então, encorajado pela nossa relação de compreensão mútua, baseada no diálogo, eu respondi “sim, e com você?”. Ela respondeu, eu emendei, ela rebateu, eu espirrei.
Um, três, quatro, vinte, trinta e dois espirros. Um atrás do outro. Tentei trancar todos. Dizem que a velocidade do espirro pode chegar a cento e sessenta quilômetros por hora e que ao tampar o nariz a pressão é tanta que pode expulsar os olhos, ou arrombar o tímpano ou romper uma veia importante e aí, babaus, já era.
Mas eu arriscaria a vida por ela outra vez se fosse preciso. E então, as mulheres! Meu Deus! As mulheres. Quem vai entendê-las? Então ela me lançou um sorriso muito leve e, antes de chegar mais perto do meu ouvido, exatamente naquela proximidade que deixa o corpo sentindo o calor um do outro, o hálito um do outro, então ela disse “posso te contar um segredo?”.
E me segredou coisas sobre aquele corpo hesitante, aquele corpo curvado e, para meu sobressalto, um corpo praticamente sem dor, para não dizer um corpo de pleno prazer. Ela se enredou no meu ouvido e eu tremi. Chegou mais perto ainda. Me olhou de um jeito de quem arrisca toda a dignidade numa confissão e me contou coisas que eu, à noite, sozinho e bêbado no meu quarto, jamais pude imaginar.

Nanda Barreto

Fonte:Brasil de Fato 

domingo, 18 de setembro de 2011

Os Miseráveis

Vitor nasceu no jardim das margaridas
Erva-daninha nunca teve primavera
Cresceu sem pai sem mãe sem norte sem seta
Pés no chão, nunca teve bicicleta

Já Hugo não nasceu, estreou
Pele branquinha, nunca teve inverno
tinha pai, mãe, caderno e fada-madrinha

Vitor virou ladrão
Hugo salafrário
Um roubava por pão
O outro para reforçar o salário
Um usava capuz
O outro gravata
Um roubava na luz
O outro em noite de serenata
Um vivia de cativeiro
O outro de negócio
Um não tinha amigo, parceiro
O outro sócio

Retrato falado Vitor tinha cara na notícia
Enquanto Hugo fazia pose pra revista
O da pólvora apodrece impenitente
O da caneta enriquece impunemente
A um só resta virar crente
O outro é candidato a presidente.

Ségio Vaz

Assista o próprio poeta lendo a poesia.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Faixa a faixa exclusivo do novo álbum do Teatro Mágico

Saiu no início de setembro o novo trabalho do grupo paulista O Teatro Mágico, batizado "A Sociedade do Espetáculo". É apenas o terceiro disco em oito anos, mas o barulho que o grupo de Osasco costuma provocar entre seus fãs é inversamente proporcional às não muitas canções que lançou até hoje.


Foto: Divulgação
Fernando Anitelli, líder d'O Teatro Mágico: trupe continua independente, apesar do assédio das gravadoras
A devoção não se explica, tampouco, pela presença do grupo na chamada grande mídia. O Teatro Mágico nunca teve gravadora, não é convidado para programas de TV, não toca em rádios comerciais. Mistura música com circo e teatro e gosta de politizar suas canções e apresentações. Vendeu 350 mil cópias do primeiro álbum, "Entrada para Raros" (2003), de modo totalmente artesanal – o pai de Fernando Anitelli (o líder do grupo) produzia e vendia os discos nos shows, um a um.
"A Sociedade do Espetáculo" deve seguir esses mesmos padrões. Apesar de convites recebidos de várias gravadoras, segundo Fernando, até hoje não houve acordo. Razões não faltam, e vão além do fato de o grupo gostar de canções politicamente engajadas. Todos os trabalhos são liberados na internet para download, oficial e gratuitamente, sob licenças Creative Commons. A trupe não quer abrir mão da venda direta dos CDs por preços baixos, nem de editar suas próprias canções sem intermediação de companhias multinacionais.
Entre os temas do novo disco (que terá 16 canções e três vinhetas), contam-se menções simpáticas ao Movimento Sem-Terra, referências às revoltas populares no Oriente Médio, críticas à "heterointolerância branca" de nossa sociedade, canções suavemente feministas, e assim por diante. 
O Teatro Mágico concedeu uma audição com exclusividade à reportagem, num dos últimos dias de gravação e mixagem no estúdio Oca – Casa de Som, em São Paulo. Seguem abaixo descrições das 16 faixas, com comentários de Fernando durante a audição.


“Além, Porém, Aqui” – “Termina com uma frase brega, ‘semear o amor’”, avisa Fernando Anitelli, temeroso dos próprios versos. “Mas é a primeira música do álbum, e fala da compreensão de um momento mais amadurecimento, de uma nova conduta. É uma coisa pra cima, pra frente.” O músico ressalta o verso “anuncia teu dissabor”, como o convite ao ouvinte para que exerça, com liberdade, seu próprio espírito crítico: pintar um mundo cor-de-rosa não é um dos propósitos d’O Teatro Mágico.

“Da Entrega...” – Os verbos no infinitivo, característicos de Anitelli, dominam a letra politicamente engajada: “apoderar-se de si”, “resistir”, “ser plural”, “repartir o acúmulo”... Em vez de ordenar ao rebanho que faça o que ele diz, o pregador prefere sugerir, com sutileza, um comportamento coletivo, colaborativo, compartilhado.

“Quermesse”
– “Fiz 15 anos atrás, na mesma época do primeiro álbum, a gente nunca gravou. A letra é mais singela”, Fernando justifica o romantismo à moda antiga da canção. “Minha nossa, é só ficar longe, que logo eu penso em você”, proclamam os versos amorosos.

“Amanhã... Será?” – A inspiração, aqui, são as recentes mobilizações populares em países do Oriente Médio, na Espanha e no Brasil. Os integrantes do Teatro Mágico costumam frequentar as marchas em São Paulo caracterizados, em contato direto e íntimo com a multidão. “Essa revolução, na verdade, é interior”, filosofa Fernando, que ao ouvir destaca a atuação de Galldino, figura-chave nos discos e shows do grupo, nos violinos. “Ele é meio cigano, um ermitão que mora na montanha do Embu, no meio do mato.”
“Esse Mundo Não Vale o Mundo” – “Esta hetero-intolerância branca te faz refém”, diz a canção pop que trata de temas de que canções pop em geral simulam não gostar. “Contaminam o chão família e tradição”, provoca o rock meio celta (segundo Fernando) que fala de “ter direito ao corpo” e à “terra-mãe que nos pariu”.

“Novo Testamento”
– O arranjo usa batida de funk carioca, opção assim explicada pelo coprodutor do disco e coautor da faixa, Daniel Santiago, músico do celebrado quinteto de Hamilton de Holanda: “Nasci em Brasília, mas morando no Rio durante nove anos aprendi a gostar do funk carioca. Morei perto de um morro, do meu banheiro dava pra ouvir na favela, quase todos os dias. O ritmo veio da capoeira, do maculelê, é totalmente brasileiro. Funk definitivamente é uma linguagem e uma manifestação cultural brasileira, veio pra ficar”.


Foto: Futura Press

Nas letras, grupo fala do Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, direitos autorais e até feminismo
“Transição” – A canção é inspirada em uma fã que virou amiga, depois moderadora de comunidades do Teatro Mágico em redes sociais, e morreu poucos meses atrás. "Milagres acontecem quando a gente vai à luta", diz a letra ao final, tomando frase emprestada de Sérgio Vaz, poeta, ativista e criador da Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia).

“Eu Não Sei na Verdade Quem Eu Sou” – Fernando explicita a origem: “Tentei escrever com teorias de crianças, inspirado numa reportagem sobre os Doutores da Alegria que meu pai me mostrou. Uma criança dizia que um palhaço é um homem todo pintado de piadas’, outra dizia que sonho era uma coisa que ela guardava dentro de um travesseiro. E os doutores diziam que não sabiam se eram médicos, atores, palhaços, ou se eles estavam sendo curados fazendo aquilo. Quem de fato sabe o que é?”.

“Nosso Pequeno Castelo” – A levada é nordestina, e a voz em dueto é de Ivan Parente, que, como Galldino, tem registro de voz agudo, algo feminino.

“Folia no Quarto” – Essa faixa contém a única voz feminina do CD, de Nô Stopa, filha do cantor e compositor Zé Geraldo. “Fiz com ela há uns dez anos, a gente brigou por causa dessa música, ‘você escreveu aquilo’, ‘não, só um pedaço’, ‘então você é falso’. Ficamos dois anos sem nos falar. Na verdade éramos apaixonados, ela namorava outro cara, eu namorava outra menina”, Fernando revela. O romance, diz, não se concretizou; a parceria, sim.
“Canção da Terra” – “Pedro Munhoz é um trovador do Rio Grande do Sul, tem uma participação grande dentro do Movimento Sem-Terra”, Fernando explica mais uma canção de tom engajado em “A Sociedade do Espetáculo”. “Ser sem-terra, ser guerreiro/ com a missão de semear/ (...) a terra é de quem semear”, diz a letra, sob cativante melodia interiorana.

“Você Me Bagunça” – “Aprender você sem te prender comigo” é o que prega a letra de declaração de amor, mas também de aceitação da distância e do afastamento. “Escrevi cheio de saudade, chorando, para minha ex-namorada”, explica Fernando.

“Tática e Estratégia”
– “Essa foi uma paixão latina que eu tive”, diz Fernando, afirmando que a inspiração vem do poeta uruguaio Mario Benedetti.

“O Que Se Perde Enquanto os Olhos Piscam” – Uma levada bem Beatles em 1967 introduz uma canção coletiva batizada pela amiga Belinha. “Fiz com o pessoal do Twitter, estava lá ao vivo e falei: ‘Gente, vamos fazer uma música agora? A ideia é listar objetos que a gente perde e não se dá conta’. Todo mundo começou a mandar coisa: guarda-chuva, documento, aliança, chaveiro, cadeado, óculos escuros, tampa de caneta... Simplesmente montei uma ordem de estrofes.” Entre objetos mais corriqueiros, começam a aparecer outros de inserção mais simbólica, “pronde vai o solo que não foi escrito?”, “pronde foi a coragem do meu coração?, “pronde vai a culpa da cópia?”, “pronde foi a versão original?”, os dois últimos relacionados com a visão combativa do Teatro Mágico sobre direito autoral, Creative Commons etc.

“Nas Margens de Mim” – Parceria e dueto com o músico carioca Leoni, foi criada via internet e telefone. “Eu tinha a música, ele trouxe a letra, Daniel inventou a harmonia do violão. Em termos de funcionalidade é perfeito”, diz Fernando, admitindo que é perceptível que cada voz foi gravada em ambiente diferente. “A gente foi fazendo, só que tinha elétrons entre a gente.”

“Fiz uma Canção pra Ela” – Parceria de Fernando com Galldino, é uma canção de amor com viés politizado: “Fiz uma canção pra ela/ na mais bela tradução de igualdade e autonomia/ ao teu corpo e coração”. “A mulher não tem autonomia sobre o próprio corpo, quando se fala de aborto, de postura”, argumenta Fernando. “Se a menina usa roupa curta, tem culpa por ser estuprada?, peraí. É uma canção de amor à mulher, mas colocando ela como liberta, não como uma mulher que precisa ser protegida, carente, solitária, pobre, fraca, indefesa, santa, mãe. É amor, mas de igual pra igual”.

Fonte:ultimosegundo

domingo, 11 de setembro de 2011

Conto 1:Terra para quem trabalha


Tudo iniciou numa sexta-feira, que seria como outra qualquer, se não fosse a decisão de alguns pais e mães de família em tomar a história nas suas mãos em vez de ver ela passar. Algumas dezenas de famílias resolveram ocupar uma área abandonada nas extremidades da cidade
Munidos de enxada, foice e facão e tantas outras ferramentas avançaram sobre o lote.
As mulheres com panos amarrados na cabeça para protegerem-se do sol, do lado os filhos que só vão para a escola à tarde e não podem ficar sozinhos. A cada passo dado o pulsar do coração acelerado na fé de conseguir um pedacinho de chão, uma pra fugir do aluguel, outra pra desocupar a casa cedida pela família. Algumas batidas mais aceleradas no peito, quando passa pela cabeça como será a reação de quem se julgar dono do lote, e bate o medo que só não é maior do que a vontade de conquistar a terra.
- Todos os terrenos terá o mesmo tamanho.- Grita o homem instruindo para que ali não se reproduza a desigualdade dos outros lugares.
Corre pela cidade a notícia de que invasores estão nas terras de um deputado estadual. A imprensa, como abutres sedentos de alimentos correm para fazer suas reportagens. E de repente dona Maria, seu João, com as mãos calejas do trabalho tornam-se criminosos com a cara estampada nos telejornais locais.
Depois de meio-dia, já está tudo limpo, dona Ana, catadora de lixo, começa a levantar um barraco, tudo material do lixão por ela recolhido, o teto de chapa de raio x. Longe de ser o sonhado, mais é o primeiro passo, a conquista da terra.
Agora o lote antes abandonado, onde servia de esconderijo para bandidos e local de consumo de drogas, dá espaço à novas ruas, aos barracos, aos sonhos.
No fim da tarde todos se reúnem ao pé de uma árvore que preservaram, e discutem como será a organização da ocupação. E naturalmente surgem falas simples, mas muito consistentes, forjando assim as lideranças que dará a linha de organicidade da nova comunidade. Cada um, dentro das suas limitações compromete-se em está constantemente na terra até que possam mudar de vez.
É chegado a noite, a lua com seu brilho especial dá mais beleza à realização desses sonhos, e ao redor de uma fogueira todos se juntam para compartilhar sua histórias, suas dores e alegrias. Humberto, um jovem de vinte e cinco anos ao lado de sua jovem esposa, pega o seu violão e anima a noite com várias canções entre ela a sua preferia, tocando em frente. As horas vão passando, aos pouco um por um vai saindo procurando um lugarzinho pra dormir.
Ao surgir um novo dia, todos sabem que é uma nova batalha a travar.
- Tá vindo um trator pra cá!- Avisa o menino Ricardinho, todo sujo e ofegante de tanto jogar bola.
Num instante todos estão aglomerados no mesmo lugar, e deles se aproximam o trator e uma caminhonete. Reconhecem o homem dentro da caminhonete preta, é Reinaldo Manga, o representante do Deputado Estadual Jonas da Rádio, que se diz dono da terra.
- E agora, o que vamo fazê? – Fala Seu Dezim, já muito nervoso.
- Num vamo arredar o pé daqui, eles não são justicia. Só a justicia é que vai tirar nois daqui. – Grita Neguinha, com a respiração ofegante, sentindo um misto de raiva e medo. A fala da mulher serviu como líquido inflamável inundando  todos de uma coragem que até então nem eles próprios sabiam ter, ergueram foices e facões e gritaram: Terra para quem trabalha!
Não se intimidando, Reinaldo desce da caminhonete e de forma arrogante dirige-se ao povo:
-Esta terra tem dono, vocês não têm nada que estarem nela, tratem de sair daqui agora ou alguém vai se machucar. Vão trabalhar, pra comprar um terreno pra vocês. Estão vendo aquele trator ali, já ele vai começar a derrubar tudo que vocês fizeram e quem se meter na frente, a ordem é passar por cima.
Ouvindo todas aquelas coisas, passava pela cabeça de cada um, quantos dias,anos, já trabalharam em busca de conseguir a tão sonhada casa própria. Mas as condições nunca lhes permitiram que alcançassem o objetivo, e hoje ouvem que devem trabalhar, que serão atropelados pelo trator se resistirem. Na verdade o atropelamento acontece todos os dias pela exploração e ganância dos patrões.
Alguém vira-se para o tratorista e com o coração aberto fala emocionado:
- Camarada, somos todos trabalhadores tanto quanto você. O senhor deve ter filhos, ta vendo essas crianças aqui? Precisam de um lugar seguro pra morar, pra crescer, e infelizmente com o valor que é pago pelo nosso trabalho não conseguiremos dá isso à eles, por isso estamos aqui. Quando o senhor deitar a noite, certamente não conseguirá dormir se derrubar o pouco que já fizemos aqui.
Infelizmente, a ideologia burguesa impregna nos trabalhadores sem que eles percebam, impossibilitando-os de se sentirem vítimas dos problemas que afligem os demais. Em nada o clamor do homem sensibilizou o tratorista, que ligou o trator como amostra de qual lado ele iria defender.
A pressão do momento, junto com o sol que aquela altura do dia estava escaldante fazia o suor correr no rosto daqueles homens e mulheres. O trator ligado sendo acelerado era uma arma sendo aportado no rosto, no sonho de cada trabalhador ali presente.
Sem nenhuma alternativa a recorrer, restou a cada um avançar em direção ao trator e tomá-lo do seu condutor, que saiu correndo deixando seu patrão para trás.
A máquina em posse agora dos ocupantes, era acelerada rumo ao veículo de Reinaldo Manga. Nesse instante chega os repórteres e câmaras e filmam aquela cena, do trator dirigindo-se contra Reinaldo. O homem é contido por seus companheiros e desliga a máquina à um fio do seu algoz.
O que ficou registrado do momento foi a violência com que o representante legal do dono da terra foi tratado, e mais uma vez os ocupantes serão expostos nos jornais com bandidos.
- Registrem isso, esses vagabundos iam me matar!- Fala Reinaldo aos repórteres, que são seus funcionários.
Reinaldo é aconselhado a sair dali, o que ele faz de imediato. Horas depois um homem veio buscar o trator.
Essa quase uma hora de pressão, serviu para unir ainda mais todos ali, aumentando ainda mais a vontade de lutar pra conquistar essa terra. Todos sabiam que a repressão sobre eles estavam apenas começando, mas se permanecessem organizados nada os abalará. O dia apenas começara, e muito já acumularam, forjados sobre pressão da repressão.
É fim de semana, todos esperam para o começo da próxima ainda mais perseguição, mas guardam a certeza de que serão apenas obstáculos a serem superados até a conquista definitiva da terra.

Por Maria Fernanda Linhares

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Marighella lembra Public Enemy e Racionais, diz Mano Brown

O rapper Mano Brown, 41, é o autor da música que encerra "Marighella". "Ele viu o filme inteiro três vezes, e não quis cobrar pelo trabalho. No final, comentou: 'Você não está fazendo este filme para seus pares, quem precisa de heróis é minha gente'", lembra a diretora Isa Ferraz.
Para Brown, o governo estadual e a prefeitura são "racistas".
A assessoria de Kassab respondeu que a gestão é a que mais investe em educação e cultura, principalmente na periferia. A assessoria de Alckmin não se pronunciou.
Abaixo, a entrevista concedida por Mano Brown à Folha.
Folha - Por que aceitou o convite de participar de "Marighella"?
Mano Brown - O convite chegou através do movimento negro. Algum cara do rap já tinha me falado sobre ele, eu conhecia de longe, só a lenda, pois é algo de não sei quantas gerações atrás. Alguém me falou também que em algum detalhe ele parecia comigo. Na luta dele, na idéia. Somos os dois filhos de preto com italiano e minha família também vem da Bahia.



O rapper Mano Brown durante show do Racionais MC's no Festival Black na Cena, no Anhembi, em São Paulo
O rapper Mano Brown durante show do Racionais MC's no Festival Black na Cena, no Anhembi, em São Paulo
Quais os paralelos entre suas ideias?
Marighella lembra Malcom X, lembra Public Enemy, lembra Racionais. Muito do que cantamos no rap provavelmente veio dele. Por exemplo, o conceito da violência contra a violência. A luta dele vem de uma época em que não podia ter eleição direta, toda hora tinha golpe. Ele foi proibido de correr pelo certo. Resolveu usar a força pois só isso resolveria.
Em que medida a luta dele se assemelha com a luta de hoje?
Hoje temos um governo de esquerda. Se ele estivesse vivo, provavelmente estaria apoiando Dilma e Lula. Mas a luta continua a mesma. A direita está aí, as forças contrárias estão atuando.
Quais, por exemplo?
O governo Alckmin é inimigo, é um governo racista de polícia, de repressão. A morte de pretos aumentou pra caramba sob sua gestão. A polícia na rua enchendo o saco e botando pressão onde não tem motivo.
E o Kassab?
É outro inimigo. Desde que assumiu, o número de shows dos Racionais diminuiu muito. Tudo que ele faz hoje é contra a cultura negra, não deixa o povo tomar a frente. É um governo racista do caralho.
Muita gente andou estranhando ver os Racionais dando show em clube de playboy.
É por falta de opção. Onde tem show dos Racionais a polícia fica pegando no pé, pedindo um monte de documento. Mas em certas baladas e boates, eles não entram.
Você foi enquadrado pela polícia recentemente no aeroporto. Como foi?
Ridículo. Só neste ano, acho que fui enquadrado umas dez vezes. Os caras me reconhecem e param. Nesse enquadro do aeroporto o polícia me chamou pelo nome diante de um monte de gente, até repórter tinha.
Como enxerga a emergência da classe C?
Tem um monte de gente comprando e consumindo.O pessoal vai atrás da aparência, compra roupa, telefone. Lógico que é necessário mas o principal está faltando: educação e instrução, e faculdade gratuita. Faltam bons motivos pra estudar. Única coisa que dá pra estudar, que dá resultado, é computador. O ensino está defasado e quem aprende outras coisas fica excluída, sem benefício nenhum.
E a cultura do consumismo?
A gente sempre constestou isso. Somos contra várias marcas. O movimento nosso não tolera envolvimento, alianças e negócios.
Voltando ao filme, você assistiu? O que achou?
O filme é ótimo. E tem um ponto de vista diferenciado, pois foi feito pela sobrinha dele. Hoje em dia Marighella é visto como herói mas na época não era assim. Achei que tinha que passar essa visão pros caras.
E a música que você compõe?
Tentei não plagiar as coisas que li sobre ele. Tentei somar, não copiar. Traduzir a ideia dele pra rapaziada. Agora, eu não convivi com o cara, tentei projetar uma visão real sem sensacionalismo barato - o que tá difícil ultimamente.
Qual a relação dela com o contexto de sua obra?
Tudo a ver. E agora estamos fazendo um novo disco. A maioria das músicas está pronta. Só que desta vez estou carregando meu piano, colocando os caras (demais integrantes do Racionais) na cara do gol: eles estão saindo mais na frente, estou ficando na contenção. Grupo é grupo.
Quando sai o novo disco?
Pode ser neste ano. Mas o disco já não é mais tão importante, virou um cartão de visitas muito caro. Compensa mais por a música na rua, e isso a gente já está fazendo.
Que acha dos nomes que estão despontando, como Criolo e Emicida?
Eles são muito bons, acima da média, mas o que não entendo é que tem três mil nomes pra falar e a mídia só fala em três. Ninguém dá espaço para gente que está aí faz tempo, como o Dexter ou Realidade Cruel. Acho que há um preconceito muito grande com o rap mais militante. É preciso conciliar esta nova geração com o rap mais combativo.
Algum recado para seus fãs?
Não perder a resistência e se fechar na ideia de saber o que quer. Tomar cuidado com as informações rápidas e erradas. A impressão é que não existe coisa para conquistar. Ao mesmo tempo, protestar virou moda, tem que tomar cuidado pro protesto não ficar apenas entre aspas. 

MORRIS KACHANI

Fonte: Folha 

Filme revela vida íntima de Marighella e traz rap inédito de Mano Brown


"Um dia, faz 40 anos, eu estava indo com meu pai para a escola e ele disse: 'Vou te contar um segredo: seu tio Carlos é o Carlos Marighella'". Assim começa o documentário "Marighella", de Isa Grinspum Ferraz, com estreia prevista para outubro.
Em uma hora e 40 minutos, "Marighella" desfia a trajetória do ícone da esquerda brasileira que acabou baleado e morto dentro de um Fusca em 1969, em São Paulo.
Meio século da história do país pode ser contado a partir dos acontecimentos em sua vida: a gênese do comunismo baiano, mulato, do qual Jorge Amado era partidário; o conflito entre integralistas e comunistas; a legalização do Partidão; a clandestinidade; a frustração com Stálin; o golpe militar e, por fim, a luta armada.
Mas o que torna "Marighella" único é o olhar íntimo que só quem era de dentro da família seria capaz de documentar: "Tio Carlos era casado com tia Clara. Eles estavam sempre aparecendo e desaparecendo de casa. Era carinhoso, brincalhão, escrevia poemas pra gente. Nunca tinha associado o rosto dele aos cartazes de 'Procura-se' espalhados pela cidade", continua a voz em off da própria Isa, que assina direção e roteiro do filme.


"A ideia é desfazer o preconceito que até pouco tempo atrás havia contra meu tio. Era um nome amaldiçoado, sinônimo de horror. Além da vida clandestina e do ciclo de prisões e torturas, procuramos mostrar também o poeta, estudioso, amante de samba, praia e futebol, e acima de tudo o grande homem de ideias que ele foi", diz Isa, socióloga formada na USP.
Na esteira da pesquisa que foi feita, surgiram algumas revelações. Clara Charf, companheira de Marighella de 1945 até sua morte, hoje aos 86, desenterrou uma pasta que pertencia a ele, na qual aparecem correspondências, mapas e esboços de ações guerrilheiras.
A produção também descobriu uma gravação de Marighella para a rádio Havana, de Cuba. Em sua fala tipicamente cadenciada, ele anuncia o rompimento com o Partido Comunista e a adesão à luta armada. Mesma época em que intelectuais europeus como o cineasta francês Jean-Luc Godard passam a enviar remessas de dinheiro em apoio à sua causa.
O filme ainda traz trilha sonora de Marco Antônio Guimarães e Mano Brown e depoimentos esclarecedores de militantes históricos, como o crítico literário Antonio Candido: "Marighella encarnava moral e psicologicamente o seu povo. Ele era pobre e não abandonou sua classe".
Já a judia Clara enfrentaria resistência do pai ao assumir o relacionamento, no que acabou se transformando numa versão tropical de "Romeu e Julieta". "Carlos era preto, comunista e gói (não judeu)", lembra Clara, aos risos. "Mas era muito doce e, no fim, conquistou a todos."

MORRIS KACHANI
Fonte: Folha

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Rotina


O relógio desperta cedo,
 Muito cedo pra quem dormiu tarde demais,
 Levanta, toma seu banho,
Toma o café que sua companheira fez,
 Tudo sem fazer muito barulho
Seus rebentos estão dormindo. 
Depois de um beijo na esposa sai de casa,
 Dirige-se ao trabalho
À correria nossa de todos os dias.
Ele vai de bicicleta,
Uma que acabara de pagar a décima segunda prestação,
Quitando assim o seu debito na loja
Onde compra e paga religiosamente.
Pra dificultar, hoje está chovendo,
Está indo vestido numa bermuda e uma camiseta,
Sem capa pra lhe proteger,
Não sobrou dinheiro esse mês para comprar a capa,
 E na sacola, sua roupa de trabalho.
Mora longe de onde trabalha,
Quarenta e cinco minutos de bicicleta,
 Por isso não vem almoçar com a família,
Leva a marmita numa outra sacola.
Marmita que uma vez por mês vê carne,
 No restante, arroz e feijão e as vezes um ovo frito.
Pedalando e cantando
Ele segue o caminho.
Se lembra de quando era criança,
Que banhava na chuva por pura diversão,
Ouvia sua mãe chamando pra dentro de casa,
para não pegar um resfriado,
E agora está na chuva por obrigação,
Tem filhos e esposa para alimentar.
Pronto! Chegou na construção,
Dentre  dezenas que agora tem na cidade,
Ele trabalha numa construção de um condomínio de luxo.
O ajudante de pedreiro,
A cada traço de massa que faz,
Sonha com a sua casa própria,
Com um quarto que dê privacidade a esposa e ele,
Quarto para as crianças,
 E uma cozinha onde todos possam
 Fazer as refeições juntos,
E não no chão de um cubículo que usam como sala.
Ele ajuda a construir residências
Que não pode ser dele,
Por que o salário que ganha
Só dá de pagar as dívidas e fazer a compra do mês. 
Ele nem se lembra a última vez que levou
Sua família no parque,
Pra fazer um lanche fora.
Deu meio dia.
Junto com seus companheiros de trabalho
Vai almoçar,
 É o momento de colocar as conversas em  dias,
Contam o que aconteceu no fim de semana,
Tiram sarro do colega perna-de-pau do time,
E compartilham seus sonhos  e problemas.
E, é hora de voltar ao batente,
As vezes dá tempo de tirar um cochilo
Num canto ou outro,
Mas hoje é segunda-feira, 
Dia de colocar o papo em dias.
E não tem reclamação
 É feliz por ter aquele serviço,
Mesmo sendo mal remunerado
Por não ter um diploma que comprovasse sua formação na área,
tão pouco sua experiência comprovada em carteira.
A chuva que caia pela manhã,
Já cessou a muito tempo 
E agora é o sol que castiga sua pele.
Mas mesmo assim continua cantando Roberto Carlos,
a música que embala o romance com sua amada.
 Já são dezoito horas,
Mas como sempre vai fazer hora-extra,
Precisa aumentar sua renda no fim do mês.
Normalmente sai as vinte e duas horas,
Quando chegar em casa seus filhos já estarão dormindo,
Ele lamenta por não ter tempo de conversar, de brincar com as crianças,
Mas entende que é um sacrifício necessário,
Pra não faltar o pão de cada dia.
Quando chega em casa, toma seu banho,
Conversa com a mulher pra saber e falar como foi o dia de todos,
E vão dormir.

Por Paulo Villa Real

"Literatura, pão e poesia"


“Literatura, pão e poesia” é o mais novo livro de Sérgio Vaz, lançado no início de agosto no Teatro Cemur, no centro de Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo. Poeta e articulador cultural da periferia de São Paulo (SP), Sérgio Vaz é um escritor representante do movimento conhecido como literatura periférica, que trata do cotidiano da periferia das grandes cidades a partir da percepção de quem nela vive.
Auto-denominado poeta vira-lata, Vaz escreve desde os 15 anos, e também épioneiro na criação de saraus de literatura e poesia, como o Sarau da Cooperifa, que ocorre todas as quartas-feiras no Jardim Guarujá, zona sul da capital. A idéia do Sarau, que existe há 10 anos, é estimular os que estão à margem a utilizarem a arte para discutir e denunciar sua realidade.
Entrevistamos o autor para saber sobre sobre o livro. Vaz também falou sobre arte, literatura periférica, renúncia fiscal e o movimento dos trabalhadores da cultura. Confira.
Brasil de Fato – Qual sua intenção com o livro Literatura, pão e poesia?
Sérgio Vaz – É uma [expressão da minha] relação cotidiana com o meu bairro e com as pessoas que eu convivo. [A ideia é] levar um pouco de literatura, falando dessas pessoas, que eu conheço muito bem. É um livro da Global Editora, que faz parte da coleção Literatura Periférica. A ideia sempre foi escrever sobre meu cotidiano. Eu me considero um cronista do meu bairro. Então escrevo sobre o lugar onde vivo. Não acho que eu seja um escritor universal, escrevo sobre o que eu vejo na minha realidade.
Nesse livro você trabalha vários gêneros, é isso?  Além da poesia, o livro também traz crônicas e contos?
É, esse livro é uma mistureba. São algumas coisas que eu escrevi em alguns jornais, algumas revistas, têm crônicas, poesias inéditas, contos. Eu quis arriscar um pouco nessa área de crônicas, contos. É um livro mais ousado. Para mim, ele é muito ousado.
É o primeiro livro que você lança com prosa?
É, exatamente. É meu primeiro livro de prosa, de crônica, por isso estou com muita expectativa e temeroso para saber o retorno.
É difícil publicar e circular livros que tratam do marginalizado?
Eu acho que hoje o difícil é você escrever um livro. Com essa nova tecnologia [deimpressão], você pode fazer menos livros numa gráfica. O difícil mesmo é a distribuição, a circulação. E é difícil quem leia também. Esse país não é um país de leitores e não só na periferia, mas na classe média e na classe alta. É um país que não lê. O grande desafio da Cooperifa é fazer a formação de público para a leitura.
A internet contribui para a circulação?
A tecnologia hoje é uma grande ferramenta para nós que somos da periferia. Eu, por exemplo, tenho meu blog, Twitter, Facebook. Então consigo me comunicar sem depender da mídia. Atinjo meu público independente disso.
Você acha que sua literatura serve também para transformar a realidade marginal, ou é um mais um retrato da vida na periferia?
Na literatura periférica, a primeira coisa que eu acho bacana é  opertencimento. Existe a literatura grega que é feita pelos gregos, a literatura romana que é feita pelos romanos, e existe a literatura periférica que é feita pelas pessoas que moram na periferia. E quando eu falo em formação do público, o primeiro livro que muita gente que mora na periferia vai ler será justamente esse livro que eu estou escrevendo ou o que outro cara da periferia escreveu. Então é uma transformação impactante na vida da pessoa porque não é o governo que está fazendo a pessoa ler, mas é uma pessoa do bairro dele, que está levando o livro na casa dele. E às vezes pode ser a entrada para a leitura de outros livros, dos grandes clássicos. Há uma importância grande nisso.
Num futuro próximo, você pensa na transformação dessa periferia ou você acha que ainda falta muito para essa realidade ser mudada?
Falta muito. Não será a literatura que vai salvar a periferia, mas o poder público atuante. A arte tem o poder de transformação pessoal, que pode fazer com que essas pessoas cobrem do poder público aquilo que é devido, aquilo que é pago em imposto, para que esse imposto retorne em benefícios. Não sou tolo de achar que a literatura pode salvar alguém nesse ponto. Eu acho que a literatura, a música, a arte de forma geral, ela transforma as pessoas em cidadãos. E são esses cidadãos que cobram do governo a postura para que ele faça com que a gente tenha esse benefício.
Como você vê essa atual lei de renúncia fiscal para empresas que patrocinam produtos ligados à cultura?
Eu acho que se muda alguma coisa para não se mudar coisa alguma. Na verdade, vão ser sempre os mesmos que vão receber esse dinheiro. Se uma empresa tem renúncia fiscal e aprova um projeto, mas se eu não for conhecido, ela não vai ter o retorno que quer. Então acaba aprovando os projetos dos mesmos, dos grandões. Eu acho que com o projeto aprovado, você poderia chegar em qualquer empresa. Aí sim acho que seria democrático. Agora, você tem um projeto aprovado por uma lei, só que isso não vai fazer com a empresa patrocine, não quer dizer nada. Uma pessoa conhecida como Maria Bethânia ou grandes cineastas, quando chegam [para requererem o patrocínio], conseguem mais fácil.
Você acha que, de alguma forma, essa lei acaba padronizando a produção da arte que é patrocinada?
Eu acho que não. Eu acho que a função do Estado é fomentar a cultura. É preciso ser mais democrático. Está na Constituição o direito à cultura, o direito à arte. Agora, cabe ao artista não ser enquadrado. Por isso meu trabalho é muito voltado para a dureza, para a criatividade. Para não ser enquadrado. O artista não pode ser enquadrado. E se ele for enquadrado, ele não é artista, né? Porque hoje tem artista que só faz [arte] quando tem a lei. Eu não vejo arte nisso. Acho importante o Estado patrocinar a arte, fomentar a cultura. Agora, se o governo não me dá dinheiro, eu não escrevo? O artista é aquele que é inquieto, é a última linha da sociedade. Quando ele se entrega e desiste é porque não resta mais nada.
Qual sua opinião sobre o atual movimento dos trabalhadores da cultura que recentemente ocuparam a Funarte (Fundação Nacional de Arte) e fizeram uma grande manifestação contra a arte como mercadoria?
É isso mesmo. O artista é esse. O artista tem que ser o cara que é incomodado, indignado. Ele tem que protestar. A arte não embala os adormecidos, ela desperta. Agora, se o artista não despertar, como ele vai despertar a pessoa que vê sua arte? Eu acho que as pessoas têm que protestar mesmo, têm que exigir do governo e do Estado a democracia na liberação das verbas.
Você participou da ocupação?
Eu não participei porque agora estou envolvido com o lançamento do meu livro e da mostra Cinema na Laje, mas eu sou um cara que apóio. Porque, veja bem, quando um grande artista não recebe dinheiro, ele vai num programa de televisão [se apresentar]. Ele fala no programa do Jô, ele vai aos grandes jornais. E tem repercussão. Para nós daqui da periferia é mais difícil. Se não é o Brasil de Fato, a Caros Amigos, ninguém fica sabendo [da nossa produção].
Por que você acha que isso acontece?
Acho que tem vários fatores. A periferia não era para protestar, não era para ter arte. Alguma coisa deu errado, né? Hoje tem mais de 50 saraus acontecendo. Nós temos três anos de Cinema na Laje. Nós passamos documentários como The Corporation (Mark Achbar e Jennifer Abbott/2004), passamos documentários como Zeitgeist (Peter Joseph/2007), passamos A Negação do Brasil (Joel Zito Araújo/2000), passamos documentários que jamais a nossa população iria ter acesso. E nesses mais de 50 saraus na periferia é onde as pessoas se apropriaram da literatura. Ou seja, para o status quo alguma coisa deu errado.
Era pra gente não ter boa literatura, era pra gente não ter boa educação, era pra gente não ter bom cinema. E a gente faz cinema e não passa O Homem Aranha, não passa nada de Hollywood. Alguma coisa deu errado dentro da concepção do Estado, da elite, né?
Por que essa auto-denominação de “poeta vira-lata”?
(Risos) Porque justamente eu passei o pior, né? Eu vejo sempre essas nomenclaturas, esses nomes pomposos da academia... e a idéia era desconstruir [isso] mesmo. O vira-lata é o cara que cata o lixo, que vira a lata né? (Risos).
Onde pode ser comprado o seu livro?
Bom, meu livro vai estar nas livrarias e na minha mochila. Podem encontrar também no Sarau da Cooperifa. O Sarau acontece toda a quarta-feira, ininterruptamente, a partir das 20h45, no bar do Zé Batidão (rua Bartolomeu dos Santos, 797, Jardim Guarujá, zona sul de São Paulo).


Aline Scarso
Fonte:http://www.brasildefato.com.br/node/7186