quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Não é invasão é ocupação

- Quanta gente filmando e fotografando nós, tamo até parecendo famoso. - Fala Rosana à sua mais nova amiga.
- Só que nós vamo aparecer no jornal como criminoso, eles num tão aqui pra ouvir o nosso lado, tão aqui pra registrar um crime. - Responde Josi,a amiga.
 Quando as duas mulheres resolveram fazer parte do grupo que ocuparia uma área desocupada nas margens de um bairro periférico, não mensuraram o tamanho da pressão que receberiam quando o reclamante da posse da terra aparecesse.
Ninguém escolhe ser chamado de invasor, as circunstâncias obrigam cada um se arranjar como pode, se adaptar. Rosana, mãe de três crianças, solteira, trabalha como doméstica para receber no fim do mês um mísero salário mínimo, mais o bolsa família no valor de cento e vinte reais. Ela sempre morou de aluguel, numa pequena casa na periferia de Altamira, nunca se reclamou da vida por nada, sempre foi à luta. No entanto mês passado a dona da casa falou que aumentaria o valor do aluguel. Ela se assustou:
- Trezentos reais? Eu só pago cem reais por mês e agora vai para trezentos?!
A proprietária com muita calma explicou que o valor do aluguel estava caro por conseqüência da procura, tinha muita gente chegando à cidade. Rosana já sabia desse aumento dos aluguéis na cidade, mas não imaginava que poderia lhe afetar, afinal ela mora num bairro afastado, longe de polícia, de hospital, longe de tudo. Dona Lúcia, a proprietária deu o ultimato: ou paga o novo valor ou terá que desocupar a casa. No dia seguinte Rosana saiu à procura de uma nova casa para alugar, mas depois de algum tempo ela percebeu que não havia placas de aluguel, e nas poucas que tinha, ouvia sempre um valor exorbitante.
À noite, uma vizinha, dona Josefa, foi lhe visitar e durante a conversa sobre sua saga à procura de uma casa para alugar, dona Josefa falou:
- É por causo da barragi muié, essa cidade tá um inferno, pobre aqui num pode viver mais. Deixa eu ti falar uma coisa, o filho da dona Maria do João tá juntando um povo pra invadir aquele terreno ali no fim do bairro, lá cabe muita gente, ele só quer gente que num tem casa mesmo. Mas que imediatamente Rosana foi à procura do filho de dona Maria do João e pediu pra ir junto na invasão.
- A partir de agora não fale mais invasão, é ocupação. - Disse o homem.
Como combinado, às seis da manhã de uma quarta-feira de Julho, homens e mulheres, seguiram rumo ao terreno munidos de facão, foices e enxadas. Lá chegando foram desbravando o matagal, enquanto alguém tratava de ir dividindo os terrenos.
Agora em plena nove horas da manhã estão todos cercados por repórteres e policiais, e alguém com uns papéis na mão dizendo ser o dono da terra, mesmo a cidade toda sabendo que aquele terreno sempre foi da prefeitura.
Com lágrimas nos olhos, Rosana se pergunta se vale a pena passar por aquilo tudo, ouvir que vai ser presa, ser tratada como criminosa. E a resposta era sim, se não fosse dessa forma ela não conseguiria dá um teto à seus filhos. E num ato espontâneo gritou que não arredaria o pé até que mostrassem o documento de reintegração de posse.
- Terra para quem trabalha! – Gritou Rosana.
Fonte: Blog Vitoriano Bill Kelevra

Documentário Os sábios de Córdoba exercita a tolerância religiosa

Morador de Nova York, o documentarista Jacob Bender presenciou os atentados de 11 de setembro de 2001. Após o impacto inicial, passou a refletir sobre as políticas de segurança adotadas pelos Estados Unidos, baseadas em teses como a do choque de civilizações entre Ocidente e Oriente, que inviabilizaria a convivência entre povos de diversas origens e religiões.
O questionamento dessa impossibilidade é o ponto de partida da jornada empreendida por Bender, que se apoia em duas figuras importantíssimas do pensamento tanto do Ocidente como do Oriente, os filósofos Averroes e Maimônides, para retornar à Espanha medieval, onde judeus, muçulmanos e cristãos coexistiam pacificamente.
Na Andaluzia, sua primeira parada, Bender constata, com a ajuda dos dois “sábios de Córdoba”, que a cultura árabe está no coração da cultura ocidental. O período em que essa região esteve sob domínio árabe foi de florescimento das ciências e da criatividade de forma geral, enquanto o resto da Europa estava mergulhada na privação de conhecimento que caracterizou a Idade Média.
As obras de Aristóteles, por exemplo foram redescobertas pelos estudiosos árabes que viviam em Al Andalus. Averroes, muçulmano e de origem árabe, fez comentários importantíssimos sobre seus escritos, sendo um dos responsáveis pelo diálogo de Al Andalus com a Grécia Clássica. Já Maimônides, de origem judaica, estudou medicina e relacionou a ciência com suas atividades religiosas, rejeitando qualquer forma de dogmatismo. Ambos nasceram em Córdoba e tiveram de deixar a cidade após a expulsão dos árabes pelos cristãos.
Bender segue os passos dos filósofos por Marrocos e Egito, além de visitar locais onde suas obras voltaram a ser estudadas posteriormente, como França e Itália. Em paralelo, o diretor busca elementos que refutam a teoria do choque de civilizações, demonstrando a contemporaneidade do pensamento dos “sábios de Córdoba”, que já se colocavam contra qualquer forma de segregação baseada na religião.
A jornada do diretor termina com a passagem por Israel e Palestina, onde o documentarista reflete sobre o conflito entre judeus e palestinos, se posicionando contra iniciativas como a construção do muro da Cisjordânia, o estabelecimento de assentamentos irregulares e a derrubada de casas de famílias palestinas.
Ao passar por esses locais, relacioná-los ao conhecimento produzido por Averroes e Maimônides, e entrevistar pessoas que estão utilizando suas tradições religiosas para desafiar as proposições mais conservadoras, Jacob Bender produz um libelo à tolerância religiosa e à convivência pacífi ca entre povos de diferentes origens.

Fonte: Brasil de Fato

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Seres humanos de condomínio


Todos ali sabiam que a maioria das revistas e dos jornais mais vendidos do país tem como primeiro objetivo vender, como segundo objetivo vender e como terceiro objetivo manter a condição de bons vendedores.
Todos ali também sabiam que o direito de fazer o som e a imagem chegar a qualquer aparelho de rádio ou televisão é um direito de todos. Porém, é um direito que foi roubado e restrito a poucas emissoras. Chamavam de latifúndio no céu...
Todos ali sabiam também que a experiência de vida da maioria dos jornalistas que trabalham para a mídia-porta-voz-do-poder-de-voz limita-se ao que vivenciam em ambientes como clubes, academias, hotéis, boates, shoppings e restaurantes. Basicamente isso. Da infância à aposentadoria. Típicos seres humanos de condomínio. São pessoas que talvez até possam saber o que é trabalhar muito. Mas, antes e depois de trabalhar, dormem numa casa confortável, tomam um café da manhã confortável, entram num carro confortável, trabalham num escritório confortável e se divertem em lugares confortáveis.
São pessoas que só conhecem pessoas do povo a partir da relação “você me serve, eu te pago”. Conhecem empregadas domésticas, faxineiras, jardineiros, porteiros de prédio, vigias de carro, garçons, balconistas etc. São pessoas que, também por isso, não sonham com um mundo igualitário. Igualitário no que diz respeito às relações de poder, no que diz respeito às possibilidades iguais de poder ser feliz.
Todos ali sabiam (e se não sabiam imaginavam) que, em sua maioria, os jornalistas que se propõem a trabalhar para a mídia-alto-falante-do-que-fala-a-classe-alta foram estudantes universitários com pouca ou nenhuma formação política. Foram estudantes do tipo que não se interessam pelos problemas da humanidade, nem se indignam o suficiente com as injustiças sociais de cada país. Não entendem e não procuram entender como as sociedades estão organizadas, como poderiam se organizar.
Todos ali também sabiam que as pessoas mais sensatas (aquelas que, no caso, têm o mínimo de formação política) não teriam tempo de fazer mais nada na vida se resolvessem retrucar diariamente a ignorância política ou o oportunismo tendencioso dessa mídia que publica o ódio ao socialismo e a ode ao capitalismo.
Todos ali sabiam disso tudo e de outras coisas mais. Entretanto, ainda havia muito o que aprender sobre o tema. E era por isso que estavam ali, sentados em círculo, debatendo esse assunto. O debate estava sendo organizado por jovens que faziam parte da Brigada de Agitação e Propaganda “Semeadores”, um grupo criado pelo Coletivo de Cultura do Movimento Sem Terra (DF e entorno). Ali, tinham trinta e poucos jovens, a maioria, assentados. A outra parte era formada por estudantes universitários do curso de comunicação social.
E o debate seguia produtivo. A cada avanço nas discussões, duas sensações prevaleciam. Primeiro, a satisfação em avançar por adquirir tais conhecimentos. Segundo, o desespero de não poder fazer nada para evitar o que acontecia há décadas: às oito da noite, milhões e milhões de fiéis sintonizados no mesmo canal, vendo e ouvindo as mesmas reportagens, feitas por seres humanos de condomínio.

Autor:Fábio Carvalho

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A última entrevista de Jaime C. Samarone e outras histórias


Foto: Galaxies and Hurricanes/CC
Não era a espessa camada de pó sobre a mobília. Não era o gato que lambia suas feridas sobre uma almofada vermelha em um dos cantos da sala. Nem mesmo a adolescente estrábica com um vestido florido e feio sentada no sofá à minha frente. Era o silêncio o que mais chamava a atenção naquela sala. Pelo menos até a menina começar a dobrar a cabeça de um lado para o outro sem qualquer propósito aparente. Ou até alguém gritar na rua que macarrão não procriava. Aí ele chegou.
Vestia um robe de algodão amarelo e calças de pijama de flanela com listras azuis e brancas. Nos pés, chinelos de dedo de borracha, escolha acertada para quem parecia não cortar as unhas dos pés há dois anos. O cabelo estava molhado e a pele avermelhada coberta de talco.
Buscava aquela entrevista sem sucesso há tempos. Havia sempre uma nova viagem, um novo projeto, uma nova esposa ou um novo transplante. E o calor dos meses pares e o frio dos meses ímpares. E a descoberta de um novo continente escondido na represa de Guarapiranga. Mas a perseverança paga. Ou empresta.
A primeira coisa que perguntei, logo após nos cumprimentarmos – ele com um aperto de mão mole, sem firmeza, sem vontade – e nos sentarmos, foi o que queria dizer a letra “c” abreviada em seu nome.
Ele acendeu um cigarro e coçou a orelha com o dedo mindinho com uma expressão de prazer, como se fosse espirrar. Depois analisou o resultado da limpeza, conferindo a quantidade de sabe lá o que trazia sob a unha. Cheirou e limpou na perna do pijama.
– Isso eu não conto pra ninguém, seu bosta! – respondeu, ainda com um sorriso.
Não é que estivesse intimidado, nem que não pudesse estar. Afinal, me encontrava diante de Jaime C. Samarone. Apenas não sabia ao certo o que fazer.
Saboreando o constrangimento, o entrevistado arranhou a garganta, puxando o catarro do fundo do peito e o engolindo.
– Outra dúvida?
– Queria entender o processo criativo... – arrisquei, tentando me recompor.
– Porra! – gritou. – Tá de sacanagem, né? Que merda é essa de processo criativo? Comigo nunca teve dessas maricagens, não. Quer fazer? Faz! Não pensa muito. Se enrolar azeda e fede mais que cueca de moleque.
– Mas sua obra...
– Que obra? Eu nunca estive no ramo da construção civil.
– Mas a arte...
– Olha só, vamos combinar: você não fala mais bobagem e eu não te avacalho, certo?
– E sobre o que o senhor gostaria de falar?
Seus lábios dividiram o rosto em dois hemisférios, criando um sorriso insano, confirmando a suspeita de que os dois dentes incisivos centrais superiores eram descomunalmente desproporcionais aos restantes. Eram imensos. Eram amarelos. E podres.
– Quero falar sobre prisão de ventre. Mas vou te dar a opção de falarmos sobre diarreia. Eu vou comentar episódios cotidianos corriqueiros, como o menino aqui do apartamento em frente que volta e meia volta cagado da rua. A mãe grita lá, “Ah, Juninho, se cagou de novo?”, e começa a choradeira do menino, que aliás já tem 32 anos. O corredor fica empesteado, né?
– E o que isso...
– Então, você põe aí no papel que eu estou na verdade falando da condição humana. Se não estamos com medo, paralisados de terror, constipados, estamos fazendo merda. Vai pegar bem com teu público.
– Fico tentado a …
– Não é o caso de apelar para a minha religiosidade...
E a voz dele foi morrendo, morrendo e morreu. O silêncio retornou à medida que suas pálpebras enrugadas cerraram. Estranhamente, o ronco não veio.
O gato coberto de chagas se aproximou e começou a se esfregar em minhas pernas. A menina vesga sorriu e eu achei que era pra mim. Uma mulher gritou de algum lugar de dentro da casa que o almoço estava pronto.
Ele acordou e ficou confuso por alguns instantes, como se não me reconhecesse e não soubesse onde estava ou o que estava fazendo ali. Depois se aquietou e abriu um sorriso triste e cansado.
– Você vai me destruir, não vai? Foi naquele exato momento que descobri que eu não valia um centavo.
*
Correu pelo quintal determinado a manter-se na frente do irmão em tudo, mesmo sendo um ano mais novo. Ali no fundo, pelo barulho, a arapuca funcionara e um passarinho lutava contra as paredes de papelão em busca da liberdade.
Na velocidade não conseguiria o primeiro lugar, pois o irmão tinha pernas mais compridas. Era o caso de apelar para a inteligência. Ou para a trapaça, que nessa idade é quase a mesma coisa. E passou o pé no irmão, que capotou espetacularmente, tendo o corpo aparado pelo queixo ao atingir o chão.
Quando um menino deixa de ser arteiro para se transformar em um filho da puta? Quando cresce? Quando passa a sentir prazer com isso? Quando transforma isso em um meio de vida? De qualquer maneira, não era algo que se iria descobrir naquele momento. A seu favor, temos que considerar que não buscava prazer no ato, mas no resultado. Os meios sórdidos foram apenas isso, meios.
O sucesso pode ser um problema. Algumas pessoas simplesmente não sabem o que fazer quando o atingem. Pois ele havia conseguido chegar à armadilha antes do irmão e estava agora ali, diante da caixa de papelão sem saber o que fazer, pois que qualquer descuido significaria a fuga do prisioneiro.
Titubeou, dançou – versão do ditado – , significou um tapa que o fez rodar sobre seu próprio eixo. E o primogênito não se fez Caim por conta da mãe que o interrompeu. Queixas brotaram, lágrimas voaram, dedos se apontaram e, por fim, o dilema de Salomão. Se não dividirem... Assim, a contragosto, o irmão recolheu o passarinho da caixa de sapato perfurada e depositou o animal nas mãos do caçula que sorriu iluminado e esmagou o pobre animal entre os dedos.
Durante muitos anos o irmão mais velho achou que, excitado, o pequeno tinha exagerado na pressão. Acreditava que a morte era um acidente. Mas alguma coisa lhe ocorreu anos depois, no meio da noite, e ele se deu conta de que Jaime era mesmo um filho da puta.
Ana tentava concentrar-se na televisão, alguma coisa ali sobre férias na Tailândia, destino de jovens aventureiros. Mas Romeu insistia em acariciar sua perna esquerda, entendendo o olhar “me deixa em paz” com o olhar “continua que está bom”. Com um sorriso forçado, ela cobriu a perna.
Romeu entendeu. Por três minutos. Depois afastou o lençol e voltou a acariciá- la.
– Você não vai me deixar em paz, né? – perguntou ela com o cenho franzido. Romeu sorriu e continuou a acariciar a perna da moça.
– Fica quietinha que eu estou pagando por isso.

Autor:Aldo Gama
Fonte: Brasil de Fato

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Dor e memória pelos desaparecidos da ditadura no romance de Bernardo Kucinski



Foto de Paulo Pepe ©
O recém-lançado livro do jornalista e escritor Bernardo Kucinski retrata a busca de um pai por sua filha, que foi vítima da ditadura civil-militar brasileira no ano de 1974. Sob o título K., o romance conta através da ficção uma história que se baseou na mais crua realidade vivida pela família Kucinski.
O pai do autor, chamado de K. na obra, é o protagonista que após a prisão e desaparecimento de sua filha, Ana Rosa Kucinski Silva, sai em busca de seu paradeiro. Ana era militante da resistência à ditadura pela Aliança Libertadora Nacional e, também, professora da Universidade de São Paulo (USP).
Nas palavras da historiadora e professora da USP, Maria Victória de Mesquita Benevides, “este livro não veio para registrar fatos do terrorismo do Estado, mas, sim, para nos colocar dentro da dor e da memória”. Ela acrescenta que esta foi a obra sobre o período da ditadura que mais a emocionou, provocando sentimentos de “compaixão” e de “raiva e indignação”, pois “se a dor suprema pertence ao pai, a sua tragédia é a de todos”.
O livro possui 177 páginas e é publicado pela Editora Expressão Popular, no valor de R$ 15. Ele pode ser adquirido através da livraria virtual da editora no site www.expressaopopular.com.br.


Por Vivian Fernandes
Fonte: Brasil de fato 

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Muito antes da metade do caminho

Homem Andando, desenho a lápis de cor
e caneta-tinteiro de Candido Portinari de 1936
Na tarde seca em que meu tio e avô foram presos, minha mãe chorou compulsivamente. Eu queria ficar com ela, mas a vizinha, que tinha telefone e trouxe a notícia, me mandou ir brincar na rua. Meu pai chegou logo depois e não entendeu nada, ficou confuso. Ninguém sabia o motivo.
Eu tinha sete anos de idade, fiquei assustado. No dia seguinte recebemos outra ligação dizendo que meu avô já tinha sido solto. O meu outro tio, que acompanhava a situação, disse pra minha mãe não pegar estrada, não era necessário. Quando surgissem mais notícias, ele daria.
Dias passaram e minha mãe incorporou uma tristeza silenciosa, olhos cinzentos. A notícia inesperada da prisão havia me dado um tipo novo de liberdade, que me permitia ficar mais tempo na rua, mas eu sempre queria voltar logo.
Eu não sabia explicar o que tinha acontecido. Todos os meus amigos e algumas mães curiosas me perguntavam, mas eu só sabia que meu tio estava preso. Na escola, minha professora pediu que não falássemos sobre o assunto, que aquilo não era para sala de aula. Isso não impediu que eu ficasse um pouco famoso. Na minha casa, a desolação. Passei a disputar a atenção de minha mãe com narrações épicas de jogos de futebol. Mentia descaradamente. Em palestras miraculosas, era goleiro de defesas memoráveis e, jogando na linha, craque goleador. Num dia, Ademir da Guia; no outro, meu chute era um balaço de Rivellino. Fui Pelé muitas vezes.
A notícia da soltura foi uma festa. A vizinha saiu correndo de casa e chamou do nosso portão. Gritou lá da rua: “Seu irmão foi solto”. Minha mãe chorou de novo.
Aí ela me disse que eu perderia alguns dias de escola porque visitaríamos meu tio. Viagem de ônibus, quatro horas de distância. Meu pai e minha mãe trancaram a fala e os gestos. Escassez de afeto. Eu, que queria olhar tudo pela janela, captar a paisagem total, inteira, fiquei com a cabeça pesada e uma torção estranha no estômago. A única coisa que minha mãe me dizia era para que, ao chegar, não olhasse muito para meu tio, não ficasse com cara de assustado, agisse como um moço grande. Isso foi repetido, repetido, repetido e fiquei nervoso. Muito antes da metade do caminho eu já estava como eles, calado e desinteressado pela janela. Eu podia contar cada minuto do caminho.
Quando chegamos, meu avô, que só tinha me visto recém-nascido, me segurou pelos dois braços e me levantou alto, contra a luz, como se atestasse seus genes. Meu outro tio fez uns gracejos, bagunçou meus cabelos. Não me importei muito, mas estava ansioso para conhecer meu tio que tinha sido preso. Eu não podia ficar olhando fixamente, parecer assustado, me espantar. Não tinha me esquecido disso, mas queria espiá-lo um pouco.
“Tudo tinha sido um engano, uma confusão”, meu avô disse. Meu tio tinha recebido em casa um forasteiro que, por azar, era perseguido pela polícia. Um cara que caminhava pela rua quando ele chegava para almoçar. O estranho pediu água, o verão do Vale do Paraíba costuma ser inclemente. Meu tio deu. Aí o cara falou que estava faminto, que queria um lugar para almoçar. Como a hospitalidade antiga tinha uma medida diferente, meu tio o convidou para entrar. Não se sabe sobre o que conversaram, se falaram durante a refeição, mas o fato é que cara não disse que era procurado pela polícia. Após o almoço ele foi embora e nunca mais foi visto por lá. Dois dias depois um jipe militar apareceu, fez estardalhaço e prendeu meu tio e meu avô, que foi libertado em seguida porque era muito velho.
O quarto do meu tio ficava no fundo do corredor, o último cômodo da casa. Minha mãe abaixou a voz aos meus ouvidos e, de novo: “Não fique olhando muito pra ele”. Deixei que ela andasse na minha frente. Meu avô nos guiava, meu pai ficou no quintal com meu outro tio.
Meu avô abriu a porta delicadamente, sem fazer barulho. Entrei colado na minha mãe, curioso e assustado. Ela colocou o indicador sobre os lábios: silêncio. Meu tio estava dormindo. Aliviei, porque podia olhar à vontade.
A primeira coisa que me impressionou foram seus olhos fechados, inchados. Pensei que era porque, sendo irmão da minha mãe, tinha gastado em choradeira, mas não. O nariz, com um corte na parte de cima, perdera o traço afilado e lembrava uma batata-doce. Em seus braços magricelas, algumas manchas escuras, sangue pisado. Na sola do pé direito, bolhas brancas: pequenas, grandes, abertas, lisas. Era difícil olhar. Minha mãe chorou de novo e eu me voltei para a janela, observei brevemente uma árvore enorme do quintal. Nos pensamentos, o medo de que ele estivesse morto.
Mas ele acordou e, ao contrário do que pensei, não chorou ao ver minha mãe, muito menos ao me ver. Deu um abraço demorado nela e, com certa naturalidade, me retirei do quarto. Do lado de fora, subi facilmente na árvore que observara, mesmo sendo impressionantemente grande. Meu pai apareceu: “A obra dos homens é imperfeita, filho”.
Poucas vezes voltamos a falar sobre a prisão e meu avô por muito tempo foi acordado por madrugadas de pesadelos estrondosos. Meu tio que foi preso se chamava Jorge. Foi através dele que vi pela primeira vez a ditadura militar brasileira.

Autor:João Carlos Ribeiro Jr.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Lançamento do filme À Margem do Xingu – vozes não consideradas


A Orla do Cais de Altamira, hoje (18),  será palco do lançamento do filme À Margem do Xingu – vozes não consideradas.

O documentário com duração de 90 minutos, mostra pessoas comuns, os futuros atingidos pela construção da hidrelétrica de Belo Monte.

Premiado como melhor documentário pelo Juri Popular no IV Festival Paulínia de Cinema, o filme será exibido às 19h, no momento estará presente o diretor do filme, Damià Puig.

Por Paulo Villa Real

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Peões em cena


 A intensa mobilização operária do ABC paulista, no fim da década de 1970 ecomeço da écada de 1980, foi amplamente apoiada, no plano cultural, por numerosos artistas de destaque, que protagonizaram combinações de showcom manifestação política memoráveis.
Mescla entre cultura e a mobilização deu origem ao grupo Forja - Foto: Divulgação
Mas havia também operários e militantes sindicais envolvidos com a cultura do movimento das greves metalúrgicas.
Criado em 1979, o Grupo Forja foi desde o começo uma iniciativa tocada pelos próprios trabalhadores, integrantes do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, que criavam os textos de maneira coletiva e atuavam eles mesmos nas encenações. Os temas abrangiam os assuntos mais candentes das batalhas sindicais e políticas contra a ditadura civil-militar.
Para falar sobre a experiência do Grupo Forja, que existiu até 1994, o Brasil de Fato entrevistou o diretor o Tin Urbinatti, que escreveu o livro Peões em Cena: Grupo de Teatro Forja (Ed. Hucitec), lançado em São Paulo, dia 29 de agosto.

Brasil de Fato – Na época em que você conheceu os operários que constituiriam o Grupo Forja, qual era seu envolvimento com os grupos de teatro de trabalhadores?
Tin Urbinatti – Em 1977, quando terminei a Universidade de São Paulo (USP), eu era articulista do jornal Movimento, que apoiou as candidaturas populares de Aurélio Peres e de Irma Passoni, candidatos à época pelo MDB [Movimento Democrático Brasileiro]. Eu fui chamado para ajudar no comitê, para auxiliar o encaminhamento da campanha. Conheci um grupo de teatro que ia fazer a campanha de Santo Dias da Silva [o grupo de Santo, a Chapa 3, de oposição sindical, procurava eleger-se como nova diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo]. [Como parte da campanha sindical] escrevi um texto, chamado O Engana Trouxa Tá Caindo, que foi encenado e apresentado na Vila das Mercês.

Como foi o surgimento do Forja?
A classe operária de São Bernardo do Campo estava prenhe de gás, de acúmulo de experiência de lutas no interior das fábricas. Nesse bojo, surge um grupo de metalúrgicos, ligados à Comissão de Salário, que já tinham brincado com teatro e viram a encenação de O Engana Trouxa Tá Caindo. E este grupo entrou em contato comigo, solicitando que eu escrevesse um texto para que eles montassem, por conta da campanha salarial deles; o eixo seria o contrato coletivo de trabalho. Fui ao sindicato dos metalúrgicos, pedi que convocassem pessoas que consideravam importantes e fiz uma entrevista com eles sobre o que significava o contrato coletivo de trabalho. Então escrevi o texto. Chamava-se Contrato Coletivo. Eles encenaram e me convidaram para a estreia. Fiquei encantado com o trabalho.

Quando foi a primeira peça do Grupo Forja?
O embrião do grupo, encenando aquele primeiro texto que escrevi, chamava-se Turma do João Ferrador. Em 1979, constitui-se o Forja e a primeira peça que o grupo escreveu coletivamente foi Pensão Liberdade, cujo texto foi encenado no Brasil inteiro.

Quais foram as necessidades que você, como artista, sentiu com relação à formação daquele grupo de operários, que tinham interesse cultural, mas não tinham formação específica?
Eu tive um trabalho durante praticamente o ano inteiro de 1979, no que diz respeito a coordenar dramaturgia e a outra parte, eminentemente prática, de interpretação teatral. Eu dava exercícios de interpretação, de expressão vocal – tudo o que é necessário para o ator. Tive aula com Eugênio Kusnet, que foi meu grande mestre. Fui formado em método de ator com ele, então tinha conhecimento razoável de Stanislavski para poder dar a eles essa base.

A partir daí, o trabalho deslanchou?
Deslanchou, a ponto de criarmos outros grupos em São Bernardo. Eles começaram a ir aos outros bairros e passavam os exercícios para os grupos das comunidades. Daí saíram pelo menos oito grupos de teatro, como “filhotes” do Forja, na região do ABC. A gente destacava um ou dois integrantes do grupo para acompanhar e dar instruções do fazer teatral, durante o processo de formação desses novos coletivos.

Essa história lembra a do Teatro de Arena ou do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da Une), que também foram propagadores de outros coletivos. Esse é um dos traços marcantes da história do teatro de agitação e propaganda (agitprop). Vocês tinham conhecimento dessas experiências?
Nunca usei o termo agitprop lá, porque não interessava ficar fazendo discurso acadêmico ou contando história. Não interessava falar difícil. Quanto mais simples eu pudesse me comunicar, mais fácil seria o trabalho e a compreensão.

Mas você tinha presente a experiência do CPC?
Sem dúvida, mas procurando recriá-la em uma outra esfera, não meramente em uma esfera panfletária. O que a gente podia levantar como discussão crítica, e não de maneira impositiva, a gente levantou. Mas havia assuntos como, por exemplo, a ditadura militar, que a gente tinha que dar um pau mesmo, e a gente dava. Nesse caso, era sectarismo puro. Aí não tinha meio tom na representação. Mas a memória do CPC – e mesmo a do teatro anarquista do começo do século, sobre o qual eu tinha lido também – está na minha base de formação, não de uma forma acadêmica, mas na práxis do fazer teatral.

Naquela época, existiam alguns grupos de teatro atuando na periferia, havia alguns anos. Vocês tinham algum tipo de intercâmbio com esses coletivos?
Cruzávamos de vez em quando com eles. Eu e o César Vieira (do Teatro União e Olho Vivo) sempre mantivemos um contato muito estreito, desde a USP, quando tínhamos o grupo das Ciências Sociais. Também com o Celso Frateschi (então integrante do Núcleo Independente) e com o grupo Galo de Briga. Mas, sem dúvida, o trabalho do Forja acontecia mais entre os trabalhadores. A primeira vez que o Grupo Forja foi chamado a participar da Federação Andreense de Teatro Amador, o pessoal ficou apavorado, porque não dava tempo! Eles tinham que trabalhar na fábrica, o dia inteiro, tinham as atividades do bairro para fazer, como campanha sindical, e de repente tinham que ir a uma reunião, em uma quarta-feira à noite, para discutir a Federação de Teatro Amador! Além disso, às vezes, a discussão de uma federação de teatro amador era uma discussão muito aquém da que eles tinham no grupo de teatro ou no sindicato.

Como foi o processo de desenvolvimento da estética do Grupo Forja?
Em primeiro lugar estava a necessidade. Cada conjuntura exigiu uma resposta artística. O primeiro momento foi de conhecimento, reconhecimento e consolidação do grupo, em 1979. Fizemos a peça Pensão Liberdade e todos nós conhecemos, discutimos, estudamos política, economia, antropologia, tudo com textos muito ligados aos estudos da classe operária, de autores como Octávio Ianni, Florestan Fernandes, Luís Flávio Rainho, além de textos de teatro, de autores como Plínio Marcos e Dias Gomes. Quando ocorreu a prisão da diretoria do sindicato, em 1980, a Lei de Segurança Nacional virou o grande problema para todo mundo - porque a ditadura se baseava na Lei de Segurança Nacional para fazer o que fez, como intervir no sindicato e prender dirigentes. Então nós inventamos de fazer um teatro que colocasse em xeque essa lei. Criamos um teatro de rua, porque o sindicato estava sob intervenção; fizemos A Greve de 80 e o Julgamento Popular da Lei de Segurança Nacional. Enfrentamos várias dificuldades, porque era teatro de rua e a gente usava texto; percebemos que texto para 30 mil, 40 mil pessoas, no estádio da Vila Euclides, não era viável. Então abolimos a palavra e usamos apenas o corpo, gestos, mímica, cenário e figurino grandiosos para comunicar a ideia à distância. Foi assim que fizemos O Robô que Virou Peão, Brasil S.A., Diretas, volver! e Boi Constituinte – cada uma dessas peças de acordo com a conjuntura econômica e política que o Brasil atravessava.

E quanto ao Teatro de Seminário?
Também surge de uma necessidade da diretoria do sindicato de fazer uma discussão mais aprofundada, técnica, de problemas específicos, como comissão de salário, hora extra. Pensamos em como colocar isso de uma forma lúdica, como fazer o teatro contribuir com isso. Então partimos para o teatro de seminário, que é uma espécie de teatro invisível, dialogando um pouco com o teatro que o Augusto Boal andou fazendo. É uma coisa brechtiana. A pessoa não sabe que está envolvida em uma situação teatral.

Naquele momento o PT estava se constituindo. Qual foi a relação do Forja com isso?
Vários integrantes do Forja carregaram piano lá. Isso aparece na entrevista que faço com a Zezé (Maria José de Carvalho Elesbão) e o Edu (Eduardo Moreira), no livro; a Zezé conta como foi a participação dela, intensíssima, no processo de constituição do PT, do qual ela foi uma das primeiras filiadas. O grupo participou intensamente. Aliás, teve vários militantes do PT que eram oriundos do grupo de teatro e o deixaram para militar no partido. Não éramos todos filiados ao PT, mas boa parte sim. Eu mesmo carreguei piano lá muito tempo.

E o afastamento do sindicato?
O grupo se retirou do sindicato em solidariedade a mim, depois da demissão. Eles tentaram conversar com a diretoria, chamaram o Lula para uma reunião, o Lula disse que ia conversar com a diretoria para rever a posição. Mas não aconteceu e o grupo se retirou em massa do sindicato, passando a atuar nos espaços que a Prefeitura de São Bernardo cedeu. Foi um momento barra pesada, porque sem um local fixo de trabalho, sem infraestrutura, ficou difícil. Mas continuamos de 1986 até 1994, com muito mais dificuldade e de forma meio nômade: fazíamos um mês em um lugar, aí a Prefeitura pedia para sair e oferecia outro espaço, e assim por diante. O grupo deixou de ter uma referência fixa. A sede, até então, era no sindicato.

Com a saída, o público continuou sendo majoritariamente operário?
Começou a mesclar, porque não tinha mais a penetração na fábrica. Antes contávamos com o boletim do sindicato, que fazia a convocação; era uma comunicação direta com o interior da fábrica. A partir daí começou a não ter mais isso. Só quem era do grupo e estava dentro da fábrica trazia os colegas, mas claro que muito limitadamente. Por isso fomos perdendo força.

Como você vê a cultura – e, mais especificamente, o teatro – de esquerda hoje, em uma fase de refluxo da classe trabalhadora? Há relação com o que vocês fizeram naquela época?
A relação é mínima, porque as pessoas nem tinham mais conhecimento do Forja. Escrevi o livro justamente para colocar na pauta do dia que já houve um grupo de operários atores – o que é muito diferente de um ex-aluno da Escola de Arte Dramática ou da Escola Livre de Teatro fazer teatro discutindo as causas operárias. É um pessoal de classe média, normalmente oriundo de escolas de teatro, que discute as questões políticas e históricas do Brasil. A discussão da questão da luta de classes no Brasil está colocada. Há um ressoar do que foi o movimento artístico da década de 1960, via CPC, Teatro Paulista do Estudante, Teatro de Arena, nesses grupos que estão se organizando. Mas é sempre o homem de classe média discutindo, como foi o CPC. A diferença entre o CPC e o Forja é que o CPC falava para os operários e, no Forja, era operário falando para operário. Não que seja algum demérito, ao contrário; esse teatro de classe média de hoje, que fala sobre questões do trabalhador, é de fundamental importância. Do ano de 2000 para frente, sobretudo nos últimos quatro anos, tem crescido muito essa discussão. Só espero que o combustível não seja a verba do [Programa Municipal de] Fomento [ao Teatro, criado em 2002, em São Paulo]. Espero que o combustível seja a ideologia mesmo.

Por Eduardo Campos de Lima,
Fonte: Brasil de Fato

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Marcelo Yuka comanda show no Rock in Rio ostentando bandeira do MST



Por detrás da bandeira do MST, o músico e ex-baterista da banda O Rappa, Marcelo Yuka, abria a rodada de shows deste sábado (24/09) no Rock in Rio, no Palco Sunset, no segundo dia de festival.
Acompanhado das cantoras Cibelle, Karina Buhr e Amora Pêra, que dividiram o palco com ele ao longo da apresentação, Yuka não deixou de politizar o que é considerado um dos maiores festivais do mundo.
Sob o som das músicas “Tribunal de rua”, “Baía de Guantánamo”, “Ninguém regula a América” e “ A carne” temas como a violência policial, críticas às políticas externas norteamericanas e questões ligadas ao racismo tampouco foram deixadas de lado.
Mais para o final, o músico ressaltou a questão da violência nos morros carioca. “A gente precisa se ligar. Não acredito em paz armada. Como artista, acredito na paz. Esse negócio de UPP, tô fora”,acentuou.
Fonte: MST

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O passado como fuga e aprendizado


Cena do filme Meia-noite em Paris,
do diretor estadunidense Woody Allen - Foto: divulgação
O filme Meia-noite em Paris, a mais recente produção do diretor estadunidense Woody Allen, em cartaz nos cinemas desde junho, tem se mostrado um grande sucesso de público e de crítica. Allen, hoje com 75 anos de idade, desde que iniciou a sua carreira como diretor de cinema – antes foi comediante em pequenos bares nos Estados Unidos – tem conseguido realizar quase um filme por ano, contando com quase 50 filmes já feitos.
Uma grande proeza se levarmos em conta que seus filmes não seguem o modelo das produções culturais de Hollywood: grande orçamento, grande publicidade, um roteiro muito pobre e um final feliz. Ele consegue de forma quase sempre brilhante aliar uma boa narrativa, um ótimo trabalho com atores e atrizes e uma crítica ao modelo de sociedade estadunidense com tons de comédia ou drama.
Paris dos anos de 1920
Ao longo de sua carreira, é recorrente o tema dos conflitos familiares, sobretudo entre casais, em suas mais diversas formas. Em Meia-noite em Paris, o fio narrativo se dá a partir do conflito de jovens estadunidenses prestes a se casarem.
Na produção deste ano, a história se desenrola a partir do drama vivido por Gil Pender, um bem-sucedido roteirista da indústria cinematográfica de Hollywood apaixonado pela cidade de Paris e por sua noiva Inez, que passa férias com ele na cidade francesa. Gil, descontente com seu trabalho, para ele cada vez mais vazio de sentido, está em busca de seu sonho: tornar-se escritor de romances, buscando, com isso, fugir da produção em série de roteiros de filmes enlatados. A necessidade de manter o alto padrão de vida por ele alcançado – e desejado por sua noiva – é um dos nós que o impossibilitam de romper com seu trabalho e com a vida que leva.
Isso se constitui como uma grande contradição para Gil, pois ele também é um amante da tradição clássica da literatura, da música e das artes plásticas que havia na Paris dos anos 1920 e que compunham uma grande efervescência artística. Lá viviam grandes escritores como Scott Fitzgerald, Ernst Hemingway, Gertrude Stein; os três, estadunidenses que migraram para França; André Breton, importante figura do movimento surrealista na literatura; artistas plásticos do calibre de Pablo Picasso, Salvador Dali, Modigliani; cineastas como Luis Buñuel; músicos como Cole Porter, reconhecido compositor de trilhas sonoras de musicais e de produções cinematográficas; entre outros.
É nessa tradição que Gil Pender se inspira para escrever seu romance e fugir do modelo de vida estadunidense (o “american way of life”). É a propósito da escrita de se livro que um dia ele descobre uma espécie de “túnel do tempo” em uma pequena rua de Paris, onde após à meia-noite ele pode voltar à cidade das luzes da década de 1920 e conviver e encontrar com todos os artistas mencionados.
Volta ao passado
A importância de se refletir sobre esse filme vai além de compreender o seu sucesso de bilheteria; está, sobretudo, nas questões que aborda de forma crítica. Uma delas é a tensa relação que Gil mantém com seu sogro – um empresário estadunidense que está em Paris a negócios, defensor de posições conservadoras e reacionárias de grupos de direita dos EUA como, por exemplo, o Tea Party – nos mais diferentes aspectos: políticos, ideológicos, artísticos, sociais etc.
Outro tema brilhantemente abordado é como as relações conjugais são mantidas principalmente pela sua aparência. Isso fica evidente na relação entre Gil e Inez, cujas perspectivas de vida são completamente diferentes, mas que, por estarem noivos, devem levar em frente o relacionamento e perpetuar o modelo estadunidense de família.
A paixão de Gil pela Paris dos anos 1920 traz duas questões a se refletir. A primeira delas é que a partir de seu descontentamento com o presente – do qual ele é um crítico cético – ele irá buscar no passado o seu ideal de vida; a segunda é a relevância da produção cultural e artística de alta qualidade estética produzida nas diferentes épocas.
Com relação ao primeiro aspecto, a volta ao passado se configura primeiramente como fuga, para depois se tornar aprendizado que influenciará sua decisão frente ao presente. O segundo aspecto se vincula ao primeiro, pois a convivência com os que se tornaram grandes artistas do século 20 constitui parte do aprendizado de Gil.
Outro aspecto que merece uma detida reflexão é a decisão que Gil Pender toma, após ter aprendido com a história, com relação ao seu futuro. Estão colocadas para ele a opção de seguir a vida tal como está, trabalhando como roteirista, se casar com Inez e manter as aparências frente à sociedade, ou romper com isso e ficar em Paris, caminhando na chuva, se reinventando como escritor e construindo uma nova vida.

Por Miguel Yoshida
Fonte:Brasil de Fato

Castanhas ao leite



Já da primeira vez, notei que ela vinha acarretada de mágoas no peito e uma história estranha na garganta. A testa retesada de quem não sabe mais o que fazer com a dor. A dor de quem se curvou. O corpo curvado de amor retido. De medo de viver. Um balançar inseguro, típico de quem não vai e não faz se não souber pra onde e o porquê. E foi dar logo de cara comigo, que adoro subverter as pequenas estruturas do dia a dia. Muita sorte ou azar.
Pouco importa. Tanto faz se ela me receia, porque sei que é docemente falsa a sua autossuficiência. E eu subverto. Me desfaço de conceitos para chegar mais perto dela. Esta mulher acaba comigo. Há dois meses que não durmo. Ela fica cravada na minha retina. Tenho mil versões dela na minha cabeça. Ela de biquíni, ela de paletó, ela de jardineira, duas dela, duas dela juntas na cama, ela, ela, ela.
A gente mantém uma relação assim: ela vem vindo pelo corredor, lenta e densa, queimando o ar, e eu vou ficando sem graça. Aí ela chega mais perto, num andar para lá de hesitante, e quando passa por mim diz “oi”. Um “oi” tímido, suave, murmurado. Deus! Que “oi” esta mulher tem! Aí eu respondo, “oi”, embasbacado. Todos os dias digo que de hoje não passa. Que dou um jeito de me avizinhar do seu pescoço. Que descubro que negócio é esse que altera todo o movimento dela. O andar dela. O rebolado dela. Ela.
Imagino os cabelos dela brincando no meu rosto. Que rosto! E o gosto? Quero experimentar o gosto de mulher que ela tem. Fantasio ela de calça de moletom cinza, camiseta azul, meias brancas e chinelos havaianas verdes, de manhã cedinho, bebendo leite ou café na minha cozinha. Ela tem um mistério, uma coisa assim encravada na alma, sabe? E eu sei que parece atrevimento, loucura ou petulância mesmo, mas acho que posso fazê-la sorrir mais largo, mais forte, mais sincero.
Todos os dias espero por ela. Busco disfarçar para que não desconfiem, mas não posso mais. Não suporto mais. Tenho bebido


Mulher de Frente, desenho
a caneta-tinteiro de
Portinari de 1941
 muito, embora já não saia mais à noite. Consegui uma foto dela, de minissaia e blusa preta numa festinha de aniversário da repartição. Bebo em casa sozinho e me entusiasmo com as mãos. Extirpo de mim meu desejo por ela. Não posso mais agir assim, sei bem. Ela de biquíni, ela de paletó, ela de jardineira, duas dela, ela, ela, ela.
Me sinto um pouco rústico por desejá-la e não dividir isso com ela. Gosto tanto das suas coxas. Ficaria o dia inteiro ajoelhado beijando as coxas dela enquanto ela trabalha, enquanto ela estuda, enquanto ela fala ao telefone. Era lá que eu gostaria de estar agora, entre suas coxas quentes e firmes. Coxas cor de castanha.
Tarde destas, quando ela veio, veio de um jeito diferente daquele que ela sempre vinha. Me lançou um olhar penitente e tinha a boca entreaberta. Eu fiquei tenso com o que ela diria. Muita língua e saliva, eu pensava, enquanto meu corpo antecipava o suor. Meu corpo todo propenso ao corpo dela, vontade súbita de tirar a roupa e amá-la ali mesmo, no chão do corredor.
Ela vinha vindo daquele jeito que eu nunca vi ela vir. Jogou para cima de mim um olhar de quem arrisca toda dignidade numa confissão e disse “oi, tudo bem”. Ela meu perguntou se estava “tudo bem”! Quase não acreditei. Então, encorajado pela nossa relação de compreensão mútua, baseada no diálogo, eu respondi “sim, e com você?”. Ela respondeu, eu emendei, ela rebateu, eu espirrei.
Um, três, quatro, vinte, trinta e dois espirros. Um atrás do outro. Tentei trancar todos. Dizem que a velocidade do espirro pode chegar a cento e sessenta quilômetros por hora e que ao tampar o nariz a pressão é tanta que pode expulsar os olhos, ou arrombar o tímpano ou romper uma veia importante e aí, babaus, já era.
Mas eu arriscaria a vida por ela outra vez se fosse preciso. E então, as mulheres! Meu Deus! As mulheres. Quem vai entendê-las? Então ela me lançou um sorriso muito leve e, antes de chegar mais perto do meu ouvido, exatamente naquela proximidade que deixa o corpo sentindo o calor um do outro, o hálito um do outro, então ela disse “posso te contar um segredo?”.
E me segredou coisas sobre aquele corpo hesitante, aquele corpo curvado e, para meu sobressalto, um corpo praticamente sem dor, para não dizer um corpo de pleno prazer. Ela se enredou no meu ouvido e eu tremi. Chegou mais perto ainda. Me olhou de um jeito de quem arrisca toda a dignidade numa confissão e me contou coisas que eu, à noite, sozinho e bêbado no meu quarto, jamais pude imaginar.

Nanda Barreto

Fonte:Brasil de Fato 

domingo, 18 de setembro de 2011

Os Miseráveis

Vitor nasceu no jardim das margaridas
Erva-daninha nunca teve primavera
Cresceu sem pai sem mãe sem norte sem seta
Pés no chão, nunca teve bicicleta

Já Hugo não nasceu, estreou
Pele branquinha, nunca teve inverno
tinha pai, mãe, caderno e fada-madrinha

Vitor virou ladrão
Hugo salafrário
Um roubava por pão
O outro para reforçar o salário
Um usava capuz
O outro gravata
Um roubava na luz
O outro em noite de serenata
Um vivia de cativeiro
O outro de negócio
Um não tinha amigo, parceiro
O outro sócio

Retrato falado Vitor tinha cara na notícia
Enquanto Hugo fazia pose pra revista
O da pólvora apodrece impenitente
O da caneta enriquece impunemente
A um só resta virar crente
O outro é candidato a presidente.

Ségio Vaz

Assista o próprio poeta lendo a poesia.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Faixa a faixa exclusivo do novo álbum do Teatro Mágico

Saiu no início de setembro o novo trabalho do grupo paulista O Teatro Mágico, batizado "A Sociedade do Espetáculo". É apenas o terceiro disco em oito anos, mas o barulho que o grupo de Osasco costuma provocar entre seus fãs é inversamente proporcional às não muitas canções que lançou até hoje.


Foto: Divulgação
Fernando Anitelli, líder d'O Teatro Mágico: trupe continua independente, apesar do assédio das gravadoras
A devoção não se explica, tampouco, pela presença do grupo na chamada grande mídia. O Teatro Mágico nunca teve gravadora, não é convidado para programas de TV, não toca em rádios comerciais. Mistura música com circo e teatro e gosta de politizar suas canções e apresentações. Vendeu 350 mil cópias do primeiro álbum, "Entrada para Raros" (2003), de modo totalmente artesanal – o pai de Fernando Anitelli (o líder do grupo) produzia e vendia os discos nos shows, um a um.
"A Sociedade do Espetáculo" deve seguir esses mesmos padrões. Apesar de convites recebidos de várias gravadoras, segundo Fernando, até hoje não houve acordo. Razões não faltam, e vão além do fato de o grupo gostar de canções politicamente engajadas. Todos os trabalhos são liberados na internet para download, oficial e gratuitamente, sob licenças Creative Commons. A trupe não quer abrir mão da venda direta dos CDs por preços baixos, nem de editar suas próprias canções sem intermediação de companhias multinacionais.
Entre os temas do novo disco (que terá 16 canções e três vinhetas), contam-se menções simpáticas ao Movimento Sem-Terra, referências às revoltas populares no Oriente Médio, críticas à "heterointolerância branca" de nossa sociedade, canções suavemente feministas, e assim por diante. 
O Teatro Mágico concedeu uma audição com exclusividade à reportagem, num dos últimos dias de gravação e mixagem no estúdio Oca – Casa de Som, em São Paulo. Seguem abaixo descrições das 16 faixas, com comentários de Fernando durante a audição.


“Além, Porém, Aqui” – “Termina com uma frase brega, ‘semear o amor’”, avisa Fernando Anitelli, temeroso dos próprios versos. “Mas é a primeira música do álbum, e fala da compreensão de um momento mais amadurecimento, de uma nova conduta. É uma coisa pra cima, pra frente.” O músico ressalta o verso “anuncia teu dissabor”, como o convite ao ouvinte para que exerça, com liberdade, seu próprio espírito crítico: pintar um mundo cor-de-rosa não é um dos propósitos d’O Teatro Mágico.

“Da Entrega...” – Os verbos no infinitivo, característicos de Anitelli, dominam a letra politicamente engajada: “apoderar-se de si”, “resistir”, “ser plural”, “repartir o acúmulo”... Em vez de ordenar ao rebanho que faça o que ele diz, o pregador prefere sugerir, com sutileza, um comportamento coletivo, colaborativo, compartilhado.

“Quermesse”
– “Fiz 15 anos atrás, na mesma época do primeiro álbum, a gente nunca gravou. A letra é mais singela”, Fernando justifica o romantismo à moda antiga da canção. “Minha nossa, é só ficar longe, que logo eu penso em você”, proclamam os versos amorosos.

“Amanhã... Será?” – A inspiração, aqui, são as recentes mobilizações populares em países do Oriente Médio, na Espanha e no Brasil. Os integrantes do Teatro Mágico costumam frequentar as marchas em São Paulo caracterizados, em contato direto e íntimo com a multidão. “Essa revolução, na verdade, é interior”, filosofa Fernando, que ao ouvir destaca a atuação de Galldino, figura-chave nos discos e shows do grupo, nos violinos. “Ele é meio cigano, um ermitão que mora na montanha do Embu, no meio do mato.”
“Esse Mundo Não Vale o Mundo” – “Esta hetero-intolerância branca te faz refém”, diz a canção pop que trata de temas de que canções pop em geral simulam não gostar. “Contaminam o chão família e tradição”, provoca o rock meio celta (segundo Fernando) que fala de “ter direito ao corpo” e à “terra-mãe que nos pariu”.

“Novo Testamento”
– O arranjo usa batida de funk carioca, opção assim explicada pelo coprodutor do disco e coautor da faixa, Daniel Santiago, músico do celebrado quinteto de Hamilton de Holanda: “Nasci em Brasília, mas morando no Rio durante nove anos aprendi a gostar do funk carioca. Morei perto de um morro, do meu banheiro dava pra ouvir na favela, quase todos os dias. O ritmo veio da capoeira, do maculelê, é totalmente brasileiro. Funk definitivamente é uma linguagem e uma manifestação cultural brasileira, veio pra ficar”.


Foto: Futura Press

Nas letras, grupo fala do Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, direitos autorais e até feminismo
“Transição” – A canção é inspirada em uma fã que virou amiga, depois moderadora de comunidades do Teatro Mágico em redes sociais, e morreu poucos meses atrás. "Milagres acontecem quando a gente vai à luta", diz a letra ao final, tomando frase emprestada de Sérgio Vaz, poeta, ativista e criador da Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia).

“Eu Não Sei na Verdade Quem Eu Sou” – Fernando explicita a origem: “Tentei escrever com teorias de crianças, inspirado numa reportagem sobre os Doutores da Alegria que meu pai me mostrou. Uma criança dizia que um palhaço é um homem todo pintado de piadas’, outra dizia que sonho era uma coisa que ela guardava dentro de um travesseiro. E os doutores diziam que não sabiam se eram médicos, atores, palhaços, ou se eles estavam sendo curados fazendo aquilo. Quem de fato sabe o que é?”.

“Nosso Pequeno Castelo” – A levada é nordestina, e a voz em dueto é de Ivan Parente, que, como Galldino, tem registro de voz agudo, algo feminino.

“Folia no Quarto” – Essa faixa contém a única voz feminina do CD, de Nô Stopa, filha do cantor e compositor Zé Geraldo. “Fiz com ela há uns dez anos, a gente brigou por causa dessa música, ‘você escreveu aquilo’, ‘não, só um pedaço’, ‘então você é falso’. Ficamos dois anos sem nos falar. Na verdade éramos apaixonados, ela namorava outro cara, eu namorava outra menina”, Fernando revela. O romance, diz, não se concretizou; a parceria, sim.
“Canção da Terra” – “Pedro Munhoz é um trovador do Rio Grande do Sul, tem uma participação grande dentro do Movimento Sem-Terra”, Fernando explica mais uma canção de tom engajado em “A Sociedade do Espetáculo”. “Ser sem-terra, ser guerreiro/ com a missão de semear/ (...) a terra é de quem semear”, diz a letra, sob cativante melodia interiorana.

“Você Me Bagunça” – “Aprender você sem te prender comigo” é o que prega a letra de declaração de amor, mas também de aceitação da distância e do afastamento. “Escrevi cheio de saudade, chorando, para minha ex-namorada”, explica Fernando.

“Tática e Estratégia”
– “Essa foi uma paixão latina que eu tive”, diz Fernando, afirmando que a inspiração vem do poeta uruguaio Mario Benedetti.

“O Que Se Perde Enquanto os Olhos Piscam” – Uma levada bem Beatles em 1967 introduz uma canção coletiva batizada pela amiga Belinha. “Fiz com o pessoal do Twitter, estava lá ao vivo e falei: ‘Gente, vamos fazer uma música agora? A ideia é listar objetos que a gente perde e não se dá conta’. Todo mundo começou a mandar coisa: guarda-chuva, documento, aliança, chaveiro, cadeado, óculos escuros, tampa de caneta... Simplesmente montei uma ordem de estrofes.” Entre objetos mais corriqueiros, começam a aparecer outros de inserção mais simbólica, “pronde vai o solo que não foi escrito?”, “pronde foi a coragem do meu coração?, “pronde vai a culpa da cópia?”, “pronde foi a versão original?”, os dois últimos relacionados com a visão combativa do Teatro Mágico sobre direito autoral, Creative Commons etc.

“Nas Margens de Mim” – Parceria e dueto com o músico carioca Leoni, foi criada via internet e telefone. “Eu tinha a música, ele trouxe a letra, Daniel inventou a harmonia do violão. Em termos de funcionalidade é perfeito”, diz Fernando, admitindo que é perceptível que cada voz foi gravada em ambiente diferente. “A gente foi fazendo, só que tinha elétrons entre a gente.”

“Fiz uma Canção pra Ela” – Parceria de Fernando com Galldino, é uma canção de amor com viés politizado: “Fiz uma canção pra ela/ na mais bela tradução de igualdade e autonomia/ ao teu corpo e coração”. “A mulher não tem autonomia sobre o próprio corpo, quando se fala de aborto, de postura”, argumenta Fernando. “Se a menina usa roupa curta, tem culpa por ser estuprada?, peraí. É uma canção de amor à mulher, mas colocando ela como liberta, não como uma mulher que precisa ser protegida, carente, solitária, pobre, fraca, indefesa, santa, mãe. É amor, mas de igual pra igual”.

Fonte:ultimosegundo

domingo, 11 de setembro de 2011

Conto 1:Terra para quem trabalha


Tudo iniciou numa sexta-feira, que seria como outra qualquer, se não fosse a decisão de alguns pais e mães de família em tomar a história nas suas mãos em vez de ver ela passar. Algumas dezenas de famílias resolveram ocupar uma área abandonada nas extremidades da cidade
Munidos de enxada, foice e facão e tantas outras ferramentas avançaram sobre o lote.
As mulheres com panos amarrados na cabeça para protegerem-se do sol, do lado os filhos que só vão para a escola à tarde e não podem ficar sozinhos. A cada passo dado o pulsar do coração acelerado na fé de conseguir um pedacinho de chão, uma pra fugir do aluguel, outra pra desocupar a casa cedida pela família. Algumas batidas mais aceleradas no peito, quando passa pela cabeça como será a reação de quem se julgar dono do lote, e bate o medo que só não é maior do que a vontade de conquistar a terra.
- Todos os terrenos terá o mesmo tamanho.- Grita o homem instruindo para que ali não se reproduza a desigualdade dos outros lugares.
Corre pela cidade a notícia de que invasores estão nas terras de um deputado estadual. A imprensa, como abutres sedentos de alimentos correm para fazer suas reportagens. E de repente dona Maria, seu João, com as mãos calejas do trabalho tornam-se criminosos com a cara estampada nos telejornais locais.
Depois de meio-dia, já está tudo limpo, dona Ana, catadora de lixo, começa a levantar um barraco, tudo material do lixão por ela recolhido, o teto de chapa de raio x. Longe de ser o sonhado, mais é o primeiro passo, a conquista da terra.
Agora o lote antes abandonado, onde servia de esconderijo para bandidos e local de consumo de drogas, dá espaço à novas ruas, aos barracos, aos sonhos.
No fim da tarde todos se reúnem ao pé de uma árvore que preservaram, e discutem como será a organização da ocupação. E naturalmente surgem falas simples, mas muito consistentes, forjando assim as lideranças que dará a linha de organicidade da nova comunidade. Cada um, dentro das suas limitações compromete-se em está constantemente na terra até que possam mudar de vez.
É chegado a noite, a lua com seu brilho especial dá mais beleza à realização desses sonhos, e ao redor de uma fogueira todos se juntam para compartilhar sua histórias, suas dores e alegrias. Humberto, um jovem de vinte e cinco anos ao lado de sua jovem esposa, pega o seu violão e anima a noite com várias canções entre ela a sua preferia, tocando em frente. As horas vão passando, aos pouco um por um vai saindo procurando um lugarzinho pra dormir.
Ao surgir um novo dia, todos sabem que é uma nova batalha a travar.
- Tá vindo um trator pra cá!- Avisa o menino Ricardinho, todo sujo e ofegante de tanto jogar bola.
Num instante todos estão aglomerados no mesmo lugar, e deles se aproximam o trator e uma caminhonete. Reconhecem o homem dentro da caminhonete preta, é Reinaldo Manga, o representante do Deputado Estadual Jonas da Rádio, que se diz dono da terra.
- E agora, o que vamo fazê? – Fala Seu Dezim, já muito nervoso.
- Num vamo arredar o pé daqui, eles não são justicia. Só a justicia é que vai tirar nois daqui. – Grita Neguinha, com a respiração ofegante, sentindo um misto de raiva e medo. A fala da mulher serviu como líquido inflamável inundando  todos de uma coragem que até então nem eles próprios sabiam ter, ergueram foices e facões e gritaram: Terra para quem trabalha!
Não se intimidando, Reinaldo desce da caminhonete e de forma arrogante dirige-se ao povo:
-Esta terra tem dono, vocês não têm nada que estarem nela, tratem de sair daqui agora ou alguém vai se machucar. Vão trabalhar, pra comprar um terreno pra vocês. Estão vendo aquele trator ali, já ele vai começar a derrubar tudo que vocês fizeram e quem se meter na frente, a ordem é passar por cima.
Ouvindo todas aquelas coisas, passava pela cabeça de cada um, quantos dias,anos, já trabalharam em busca de conseguir a tão sonhada casa própria. Mas as condições nunca lhes permitiram que alcançassem o objetivo, e hoje ouvem que devem trabalhar, que serão atropelados pelo trator se resistirem. Na verdade o atropelamento acontece todos os dias pela exploração e ganância dos patrões.
Alguém vira-se para o tratorista e com o coração aberto fala emocionado:
- Camarada, somos todos trabalhadores tanto quanto você. O senhor deve ter filhos, ta vendo essas crianças aqui? Precisam de um lugar seguro pra morar, pra crescer, e infelizmente com o valor que é pago pelo nosso trabalho não conseguiremos dá isso à eles, por isso estamos aqui. Quando o senhor deitar a noite, certamente não conseguirá dormir se derrubar o pouco que já fizemos aqui.
Infelizmente, a ideologia burguesa impregna nos trabalhadores sem que eles percebam, impossibilitando-os de se sentirem vítimas dos problemas que afligem os demais. Em nada o clamor do homem sensibilizou o tratorista, que ligou o trator como amostra de qual lado ele iria defender.
A pressão do momento, junto com o sol que aquela altura do dia estava escaldante fazia o suor correr no rosto daqueles homens e mulheres. O trator ligado sendo acelerado era uma arma sendo aportado no rosto, no sonho de cada trabalhador ali presente.
Sem nenhuma alternativa a recorrer, restou a cada um avançar em direção ao trator e tomá-lo do seu condutor, que saiu correndo deixando seu patrão para trás.
A máquina em posse agora dos ocupantes, era acelerada rumo ao veículo de Reinaldo Manga. Nesse instante chega os repórteres e câmaras e filmam aquela cena, do trator dirigindo-se contra Reinaldo. O homem é contido por seus companheiros e desliga a máquina à um fio do seu algoz.
O que ficou registrado do momento foi a violência com que o representante legal do dono da terra foi tratado, e mais uma vez os ocupantes serão expostos nos jornais com bandidos.
- Registrem isso, esses vagabundos iam me matar!- Fala Reinaldo aos repórteres, que são seus funcionários.
Reinaldo é aconselhado a sair dali, o que ele faz de imediato. Horas depois um homem veio buscar o trator.
Essa quase uma hora de pressão, serviu para unir ainda mais todos ali, aumentando ainda mais a vontade de lutar pra conquistar essa terra. Todos sabiam que a repressão sobre eles estavam apenas começando, mas se permanecessem organizados nada os abalará. O dia apenas começara, e muito já acumularam, forjados sobre pressão da repressão.
É fim de semana, todos esperam para o começo da próxima ainda mais perseguição, mas guardam a certeza de que serão apenas obstáculos a serem superados até a conquista definitiva da terra.

Por Maria Fernanda Linhares

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Marighella lembra Public Enemy e Racionais, diz Mano Brown

O rapper Mano Brown, 41, é o autor da música que encerra "Marighella". "Ele viu o filme inteiro três vezes, e não quis cobrar pelo trabalho. No final, comentou: 'Você não está fazendo este filme para seus pares, quem precisa de heróis é minha gente'", lembra a diretora Isa Ferraz.
Para Brown, o governo estadual e a prefeitura são "racistas".
A assessoria de Kassab respondeu que a gestão é a que mais investe em educação e cultura, principalmente na periferia. A assessoria de Alckmin não se pronunciou.
Abaixo, a entrevista concedida por Mano Brown à Folha.
Folha - Por que aceitou o convite de participar de "Marighella"?
Mano Brown - O convite chegou através do movimento negro. Algum cara do rap já tinha me falado sobre ele, eu conhecia de longe, só a lenda, pois é algo de não sei quantas gerações atrás. Alguém me falou também que em algum detalhe ele parecia comigo. Na luta dele, na idéia. Somos os dois filhos de preto com italiano e minha família também vem da Bahia.



O rapper Mano Brown durante show do Racionais MC's no Festival Black na Cena, no Anhembi, em São Paulo
O rapper Mano Brown durante show do Racionais MC's no Festival Black na Cena, no Anhembi, em São Paulo
Quais os paralelos entre suas ideias?
Marighella lembra Malcom X, lembra Public Enemy, lembra Racionais. Muito do que cantamos no rap provavelmente veio dele. Por exemplo, o conceito da violência contra a violência. A luta dele vem de uma época em que não podia ter eleição direta, toda hora tinha golpe. Ele foi proibido de correr pelo certo. Resolveu usar a força pois só isso resolveria.
Em que medida a luta dele se assemelha com a luta de hoje?
Hoje temos um governo de esquerda. Se ele estivesse vivo, provavelmente estaria apoiando Dilma e Lula. Mas a luta continua a mesma. A direita está aí, as forças contrárias estão atuando.
Quais, por exemplo?
O governo Alckmin é inimigo, é um governo racista de polícia, de repressão. A morte de pretos aumentou pra caramba sob sua gestão. A polícia na rua enchendo o saco e botando pressão onde não tem motivo.
E o Kassab?
É outro inimigo. Desde que assumiu, o número de shows dos Racionais diminuiu muito. Tudo que ele faz hoje é contra a cultura negra, não deixa o povo tomar a frente. É um governo racista do caralho.
Muita gente andou estranhando ver os Racionais dando show em clube de playboy.
É por falta de opção. Onde tem show dos Racionais a polícia fica pegando no pé, pedindo um monte de documento. Mas em certas baladas e boates, eles não entram.
Você foi enquadrado pela polícia recentemente no aeroporto. Como foi?
Ridículo. Só neste ano, acho que fui enquadrado umas dez vezes. Os caras me reconhecem e param. Nesse enquadro do aeroporto o polícia me chamou pelo nome diante de um monte de gente, até repórter tinha.
Como enxerga a emergência da classe C?
Tem um monte de gente comprando e consumindo.O pessoal vai atrás da aparência, compra roupa, telefone. Lógico que é necessário mas o principal está faltando: educação e instrução, e faculdade gratuita. Faltam bons motivos pra estudar. Única coisa que dá pra estudar, que dá resultado, é computador. O ensino está defasado e quem aprende outras coisas fica excluída, sem benefício nenhum.
E a cultura do consumismo?
A gente sempre constestou isso. Somos contra várias marcas. O movimento nosso não tolera envolvimento, alianças e negócios.
Voltando ao filme, você assistiu? O que achou?
O filme é ótimo. E tem um ponto de vista diferenciado, pois foi feito pela sobrinha dele. Hoje em dia Marighella é visto como herói mas na época não era assim. Achei que tinha que passar essa visão pros caras.
E a música que você compõe?
Tentei não plagiar as coisas que li sobre ele. Tentei somar, não copiar. Traduzir a ideia dele pra rapaziada. Agora, eu não convivi com o cara, tentei projetar uma visão real sem sensacionalismo barato - o que tá difícil ultimamente.
Qual a relação dela com o contexto de sua obra?
Tudo a ver. E agora estamos fazendo um novo disco. A maioria das músicas está pronta. Só que desta vez estou carregando meu piano, colocando os caras (demais integrantes do Racionais) na cara do gol: eles estão saindo mais na frente, estou ficando na contenção. Grupo é grupo.
Quando sai o novo disco?
Pode ser neste ano. Mas o disco já não é mais tão importante, virou um cartão de visitas muito caro. Compensa mais por a música na rua, e isso a gente já está fazendo.
Que acha dos nomes que estão despontando, como Criolo e Emicida?
Eles são muito bons, acima da média, mas o que não entendo é que tem três mil nomes pra falar e a mídia só fala em três. Ninguém dá espaço para gente que está aí faz tempo, como o Dexter ou Realidade Cruel. Acho que há um preconceito muito grande com o rap mais militante. É preciso conciliar esta nova geração com o rap mais combativo.
Algum recado para seus fãs?
Não perder a resistência e se fechar na ideia de saber o que quer. Tomar cuidado com as informações rápidas e erradas. A impressão é que não existe coisa para conquistar. Ao mesmo tempo, protestar virou moda, tem que tomar cuidado pro protesto não ficar apenas entre aspas. 

MORRIS KACHANI

Fonte: Folha 

Filme revela vida íntima de Marighella e traz rap inédito de Mano Brown


"Um dia, faz 40 anos, eu estava indo com meu pai para a escola e ele disse: 'Vou te contar um segredo: seu tio Carlos é o Carlos Marighella'". Assim começa o documentário "Marighella", de Isa Grinspum Ferraz, com estreia prevista para outubro.
Em uma hora e 40 minutos, "Marighella" desfia a trajetória do ícone da esquerda brasileira que acabou baleado e morto dentro de um Fusca em 1969, em São Paulo.
Meio século da história do país pode ser contado a partir dos acontecimentos em sua vida: a gênese do comunismo baiano, mulato, do qual Jorge Amado era partidário; o conflito entre integralistas e comunistas; a legalização do Partidão; a clandestinidade; a frustração com Stálin; o golpe militar e, por fim, a luta armada.
Mas o que torna "Marighella" único é o olhar íntimo que só quem era de dentro da família seria capaz de documentar: "Tio Carlos era casado com tia Clara. Eles estavam sempre aparecendo e desaparecendo de casa. Era carinhoso, brincalhão, escrevia poemas pra gente. Nunca tinha associado o rosto dele aos cartazes de 'Procura-se' espalhados pela cidade", continua a voz em off da própria Isa, que assina direção e roteiro do filme.


"A ideia é desfazer o preconceito que até pouco tempo atrás havia contra meu tio. Era um nome amaldiçoado, sinônimo de horror. Além da vida clandestina e do ciclo de prisões e torturas, procuramos mostrar também o poeta, estudioso, amante de samba, praia e futebol, e acima de tudo o grande homem de ideias que ele foi", diz Isa, socióloga formada na USP.
Na esteira da pesquisa que foi feita, surgiram algumas revelações. Clara Charf, companheira de Marighella de 1945 até sua morte, hoje aos 86, desenterrou uma pasta que pertencia a ele, na qual aparecem correspondências, mapas e esboços de ações guerrilheiras.
A produção também descobriu uma gravação de Marighella para a rádio Havana, de Cuba. Em sua fala tipicamente cadenciada, ele anuncia o rompimento com o Partido Comunista e a adesão à luta armada. Mesma época em que intelectuais europeus como o cineasta francês Jean-Luc Godard passam a enviar remessas de dinheiro em apoio à sua causa.
O filme ainda traz trilha sonora de Marco Antônio Guimarães e Mano Brown e depoimentos esclarecedores de militantes históricos, como o crítico literário Antonio Candido: "Marighella encarnava moral e psicologicamente o seu povo. Ele era pobre e não abandonou sua classe".
Já a judia Clara enfrentaria resistência do pai ao assumir o relacionamento, no que acabou se transformando numa versão tropical de "Romeu e Julieta". "Carlos era preto, comunista e gói (não judeu)", lembra Clara, aos risos. "Mas era muito doce e, no fim, conquistou a todos."

MORRIS KACHANI
Fonte: Folha