Já
da primeira vez, notei que ela vinha acarretada de mágoas no peito e
uma história estranha na garganta. A testa retesada de quem não sabe
mais o que fazer com a dor. A dor de quem se curvou. O corpo curvado de
amor retido. De medo de viver. Um balançar inseguro, típico de quem não
vai e não faz se não souber pra onde e o porquê. E foi dar logo de cara
comigo, que adoro subverter as pequenas estruturas do dia a dia. Muita
sorte ou azar.

A
gente mantém uma relação assim: ela vem vindo pelo corredor, lenta e
densa, queimando o ar, e eu vou ficando sem graça. Aí ela chega mais
perto, num andar para lá de hesitante, e quando passa por mim diz “oi”.
Um “oi” tímido, suave, murmurado. Deus! Que “oi” esta mulher tem! Aí eu
respondo, “oi”, embasbacado. Todos os dias digo que de hoje não passa.
Que dou um jeito de me avizinhar do seu pescoço. Que descubro que
negócio é esse que altera todo o movimento dela. O andar dela. O
rebolado dela. Ela.
Imagino os cabelos dela brincando no meu
rosto. Que rosto! E o gosto? Quero experimentar o gosto de mulher que
ela tem. Fantasio ela de calça de moletom cinza, camiseta azul, meias
brancas e chinelos havaianas verdes, de manhã cedinho, bebendo leite ou
café na minha cozinha. Ela tem um mistério, uma coisa assim encravada na
alma, sabe? E eu sei que parece atrevimento, loucura ou petulância
mesmo, mas acho que posso fazê-la sorrir mais largo, mais forte, mais
sincero.
Todos os dias espero por ela. Busco disfarçar para que
não desconfiem, mas não posso mais. Não suporto mais. Tenho bebido
Mulher de Frente, desenho
a caneta-tinteiro de
Portinari de 1941
a caneta-tinteiro de
Portinari de 1941
muito, embora já não saia mais à noite. Consegui uma foto dela, de
minissaia e blusa preta numa festinha de aniversário da repartição. Bebo
em casa sozinho e me entusiasmo com as mãos. Extirpo de mim meu desejo
por ela. Não posso mais agir assim, sei bem. Ela de biquíni, ela de
paletó, ela de jardineira, duas dela, ela, ela, ela.
Me sinto um
pouco rústico por desejá-la e não dividir isso com ela. Gosto tanto das
suas coxas. Ficaria o dia inteiro ajoelhado beijando as coxas dela
enquanto ela trabalha, enquanto ela estuda, enquanto ela fala ao
telefone. Era lá que eu gostaria de estar agora, entre suas coxas
quentes e firmes. Coxas cor de castanha.
Tarde destas, quando ela
veio, veio de um jeito diferente daquele que ela sempre vinha. Me
lançou um olhar penitente e tinha a boca entreaberta. Eu fiquei tenso
com o que ela diria. Muita língua e saliva, eu pensava, enquanto meu
corpo antecipava o suor. Meu corpo todo propenso ao corpo dela, vontade
súbita de tirar a roupa e amá-la ali mesmo, no chão do corredor.
Ela
vinha vindo daquele jeito que eu nunca vi ela vir. Jogou para cima de
mim um olhar de quem arrisca toda dignidade numa confissão e disse “oi,
tudo bem”. Ela meu perguntou se estava “tudo bem”! Quase não acreditei.
Então, encorajado pela nossa relação de compreensão mútua, baseada no
diálogo, eu respondi “sim, e com você?”. Ela respondeu, eu emendei, ela
rebateu, eu espirrei.
Um, três, quatro, vinte, trinta e dois
espirros. Um atrás do outro. Tentei trancar todos. Dizem que a
velocidade do espirro pode chegar a cento e sessenta quilômetros por
hora e que ao tampar o nariz a pressão é tanta que pode expulsar os
olhos, ou arrombar o tímpano ou romper uma veia importante e aí, babaus,
já era.
Mas eu arriscaria a vida por ela outra vez se fosse
preciso. E então, as mulheres! Meu Deus! As mulheres. Quem vai
entendê-las? Então ela me lançou um sorriso muito leve e, antes de
chegar mais perto do meu ouvido, exatamente naquela proximidade que
deixa o corpo sentindo o calor um do outro, o hálito um do outro, então
ela disse “posso te contar um segredo?”.
E me segredou coisas
sobre aquele corpo hesitante, aquele corpo curvado e, para meu
sobressalto, um corpo praticamente sem dor, para não dizer um corpo de
pleno prazer. Ela se enredou no meu ouvido e eu tremi. Chegou mais perto
ainda. Me olhou de um jeito de quem arrisca toda a dignidade numa
confissão e me contou coisas que eu, à noite, sozinho e bêbado no meu
quarto, jamais pude imaginar.
Nanda Barreto
Fonte:Brasil de Fato
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