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Foto: Galaxies and Hurricanes/CC |
Não
era a espessa camada de pó sobre a mobília. Não era o gato que lambia
suas feridas sobre uma almofada vermelha em um dos cantos da sala. Nem
mesmo a adolescente estrábica com um vestido florido e feio sentada no
sofá à minha frente. Era o silêncio o que mais chamava a atenção naquela
sala. Pelo menos até a menina começar a dobrar a cabeça de um lado para
o outro sem qualquer propósito aparente. Ou até alguém gritar na rua
que macarrão não procriava. Aí ele chegou.
Vestia
um robe de algodão amarelo e calças de pijama de flanela com listras
azuis e brancas. Nos pés, chinelos de dedo de borracha, escolha acertada
para quem parecia não cortar as unhas dos pés há dois anos. O cabelo
estava molhado e a pele avermelhada coberta de talco.
Buscava
aquela entrevista sem sucesso há tempos. Havia sempre uma nova viagem,
um novo projeto, uma nova esposa ou um novo transplante. E o calor dos
meses pares e o frio dos meses ímpares. E a descoberta de um novo
continente escondido na represa de Guarapiranga. Mas a perseverança
paga. Ou empresta.
A primeira coisa que
perguntei, logo após nos cumprimentarmos – ele com um aperto de mão
mole, sem firmeza, sem vontade – e nos sentarmos, foi o que queria dizer
a letra “c” abreviada em seu nome.
Ele acendeu
um cigarro e coçou a orelha com o dedo mindinho com uma expressão de
prazer, como se fosse espirrar. Depois analisou o resultado da limpeza,
conferindo a quantidade de sabe lá o que trazia sob a unha. Cheirou e
limpou na perna do pijama.
– Isso eu não conto pra ninguém, seu bosta! – respondeu, ainda com um sorriso.
Não
é que estivesse intimidado, nem que não pudesse estar. Afinal, me
encontrava diante de Jaime C. Samarone. Apenas não sabia ao certo o que
fazer.
Saboreando o constrangimento, o entrevistado arranhou a garganta, puxando o catarro do fundo do peito e o engolindo.
– Outra dúvida?
– Queria entender o processo criativo... – arrisquei, tentando me recompor.
–
Porra! – gritou. – Tá de sacanagem, né? Que merda é essa de processo
criativo? Comigo nunca teve dessas maricagens, não. Quer fazer? Faz! Não
pensa muito. Se enrolar azeda e fede mais que cueca de moleque.
– Mas sua obra...
– Que obra? Eu nunca estive no ramo da construção civil.
– Mas a arte...
– Olha só, vamos combinar: você não fala mais bobagem e eu não te avacalho, certo?
– E sobre o que o senhor gostaria de falar?
Seus
lábios dividiram o rosto em dois hemisférios, criando um sorriso
insano, confirmando a suspeita de que os dois dentes incisivos centrais
superiores eram descomunalmente desproporcionais aos restantes. Eram
imensos. Eram amarelos. E podres.
– Quero falar
sobre prisão de ventre. Mas vou te dar a opção de falarmos sobre
diarreia. Eu vou comentar episódios cotidianos corriqueiros, como o
menino aqui do apartamento em frente que volta e meia volta cagado da
rua. A mãe grita lá, “Ah, Juninho, se cagou de novo?”, e começa a
choradeira do menino, que aliás já tem 32 anos. O corredor fica
empesteado, né?
– E o que isso...
–
Então, você põe aí no papel que eu estou na verdade falando da condição
humana. Se não estamos com medo, paralisados de terror, constipados,
estamos fazendo merda. Vai pegar bem com teu público.
– Fico tentado a …
– Não é o caso de apelar para a minha religiosidade...
E
a voz dele foi morrendo, morrendo e morreu. O silêncio retornou à
medida que suas pálpebras enrugadas cerraram. Estranhamente, o ronco não
veio.
O gato coberto de chagas se aproximou e
começou a se esfregar em minhas pernas. A menina vesga sorriu e eu achei
que era pra mim. Uma mulher gritou de algum lugar de dentro da casa que
o almoço estava pronto.
Ele acordou e ficou
confuso por alguns instantes, como se não me reconhecesse e não soubesse
onde estava ou o que estava fazendo ali. Depois se aquietou e abriu um
sorriso triste e cansado.
– Você vai me destruir, não vai? Foi naquele exato momento que descobri que eu não valia um centavo.
*
Correu
pelo quintal determinado a manter-se na frente do irmão em tudo, mesmo
sendo um ano mais novo. Ali no fundo, pelo barulho, a arapuca funcionara
e um passarinho lutava contra as paredes de papelão em busca da
liberdade.
Na velocidade não conseguiria o
primeiro lugar, pois o irmão tinha pernas mais compridas. Era o caso de
apelar para a inteligência. Ou para a trapaça, que nessa idade é quase a
mesma coisa. E passou o pé no irmão, que capotou espetacularmente,
tendo o corpo aparado pelo queixo ao atingir o chão.
Quando
um menino deixa de ser arteiro para se transformar em um filho da puta?
Quando cresce? Quando passa a sentir prazer com isso? Quando transforma
isso em um meio de vida? De qualquer maneira, não era algo que se iria
descobrir naquele momento. A seu favor, temos que considerar que não
buscava prazer no ato, mas no resultado. Os meios sórdidos foram apenas
isso, meios.
O sucesso pode ser um problema.
Algumas pessoas simplesmente não sabem o que fazer quando o atingem.
Pois ele havia conseguido chegar à armadilha antes do irmão e estava
agora ali, diante da caixa de papelão sem saber o que fazer, pois que
qualquer descuido significaria a fuga do prisioneiro.
Titubeou,
dançou – versão do ditado – , significou um tapa que o fez rodar sobre
seu próprio eixo. E o primogênito não se fez Caim por conta da mãe que o
interrompeu. Queixas brotaram, lágrimas voaram, dedos se apontaram e,
por fim, o dilema de Salomão. Se não dividirem... Assim, a contragosto, o
irmão recolheu o passarinho da caixa de sapato perfurada e depositou o
animal nas mãos do caçula que sorriu iluminado e esmagou o pobre animal
entre os dedos.
Durante muitos anos o irmão mais
velho achou que, excitado, o pequeno tinha exagerado na pressão.
Acreditava que a morte era um acidente. Mas alguma coisa lhe ocorreu
anos depois, no meio da noite, e ele se deu conta de que Jaime era mesmo
um filho da puta.
Ana tentava concentrar-se na
televisão, alguma coisa ali sobre férias na Tailândia, destino de jovens
aventureiros. Mas Romeu insistia em acariciar sua perna esquerda,
entendendo o olhar “me deixa em paz” com o olhar “continua que está
bom”. Com um sorriso forçado, ela cobriu a perna.
Romeu entendeu. Por três minutos. Depois afastou o lençol e voltou a acariciá- la.
– Você não vai me deixar em paz, né? – perguntou ela com o cenho franzido. Romeu sorriu e continuou a acariciar a perna da moça.
– Fica quietinha que eu estou pagando por isso.
Autor:Aldo Gama
Fonte: Brasil de Fato