Homem Andando, desenho a lápis de cor e caneta-tinteiro de Candido Portinari de 1936 |
Na
tarde seca em que meu tio e avô foram presos, minha mãe chorou
compulsivamente. Eu queria ficar com ela, mas a vizinha, que tinha
telefone e trouxe a notícia, me mandou ir brincar na rua. Meu pai chegou
logo depois e não entendeu nada, ficou confuso. Ninguém sabia o motivo.
Eu
tinha sete anos de idade, fiquei assustado. No dia seguinte recebemos
outra ligação dizendo que meu avô já tinha sido solto. O meu outro tio,
que acompanhava a situação, disse pra minha mãe não pegar estrada, não
era necessário. Quando surgissem mais notícias, ele daria.
Dias
passaram e minha mãe incorporou uma tristeza silenciosa, olhos
cinzentos. A notícia inesperada da prisão havia me dado um tipo novo de
liberdade, que me permitia ficar mais tempo na rua, mas eu sempre queria
voltar logo.
Eu não sabia explicar o que tinha
acontecido. Todos os meus amigos e algumas mães curiosas me perguntavam,
mas eu só sabia que meu tio estava preso. Na escola, minha professora
pediu que não falássemos sobre o assunto, que aquilo não era para sala
de aula. Isso não impediu que eu ficasse um pouco famoso. Na minha casa,
a desolação. Passei a disputar a atenção de minha mãe com narrações
épicas de jogos de futebol. Mentia descaradamente. Em palestras
miraculosas, era goleiro de defesas memoráveis e, jogando na linha,
craque goleador. Num dia, Ademir da Guia; no outro, meu chute era um
balaço de Rivellino. Fui Pelé muitas vezes.
A
notícia da soltura foi uma festa. A vizinha saiu correndo de casa e
chamou do nosso portão. Gritou lá da rua: “Seu irmão foi solto”. Minha
mãe chorou de novo.
Aí ela me disse que eu
perderia alguns dias de escola porque visitaríamos meu tio. Viagem de
ônibus, quatro horas de distância. Meu pai e minha mãe trancaram a fala e
os gestos. Escassez de afeto. Eu, que queria olhar tudo pela janela,
captar a paisagem total, inteira, fiquei com a cabeça pesada e uma
torção estranha no estômago. A única coisa que minha mãe me dizia era
para que, ao chegar, não olhasse muito para meu tio, não ficasse com
cara de assustado, agisse como um moço grande. Isso foi repetido,
repetido, repetido e fiquei nervoso. Muito antes da metade do caminho eu
já estava como eles, calado e desinteressado pela janela. Eu podia
contar cada minuto do caminho.
Quando chegamos,
meu avô, que só tinha me visto recém-nascido, me segurou pelos dois
braços e me levantou alto, contra a luz, como se atestasse seus genes.
Meu outro tio fez uns gracejos, bagunçou meus cabelos. Não me importei
muito, mas estava ansioso para conhecer meu tio que tinha sido preso. Eu
não podia ficar olhando fixamente, parecer assustado, me espantar. Não
tinha me esquecido disso, mas queria espiá-lo um pouco.
“Tudo
tinha sido um engano, uma confusão”, meu avô disse. Meu tio tinha
recebido em casa um forasteiro que, por azar, era perseguido pela
polícia. Um cara que caminhava pela rua quando ele chegava para almoçar.
O estranho pediu água, o verão do Vale do Paraíba costuma ser
inclemente. Meu tio deu. Aí o cara falou que estava faminto, que queria
um lugar para almoçar. Como a hospitalidade antiga tinha uma medida
diferente, meu tio o convidou para entrar. Não se sabe sobre o que
conversaram, se falaram durante a refeição, mas o fato é que cara não
disse que era procurado pela polícia. Após o almoço ele foi embora e
nunca mais foi visto por lá. Dois dias depois um jipe militar apareceu,
fez estardalhaço e prendeu meu tio e meu avô, que foi libertado em
seguida porque era muito velho.
O quarto do meu
tio ficava no fundo do corredor, o último cômodo da casa. Minha mãe
abaixou a voz aos meus ouvidos e, de novo: “Não fique olhando muito pra
ele”. Deixei que ela andasse na minha frente. Meu avô nos guiava, meu
pai ficou no quintal com meu outro tio.
Meu avô
abriu a porta delicadamente, sem fazer barulho. Entrei colado na minha
mãe, curioso e assustado. Ela colocou o indicador sobre os lábios:
silêncio. Meu tio estava dormindo. Aliviei, porque podia olhar à
vontade.
A primeira coisa que me impressionou
foram seus olhos fechados, inchados. Pensei que era porque, sendo irmão
da minha mãe, tinha gastado em choradeira, mas não. O nariz, com um
corte na parte de cima, perdera o traço afilado e lembrava uma
batata-doce. Em seus braços magricelas, algumas manchas escuras, sangue
pisado. Na sola do pé direito, bolhas brancas: pequenas, grandes,
abertas, lisas. Era difícil olhar. Minha mãe chorou de novo e eu me
voltei para a janela, observei brevemente uma árvore enorme do quintal.
Nos pensamentos, o medo de que ele estivesse morto.
Mas
ele acordou e, ao contrário do que pensei, não chorou ao ver minha mãe,
muito menos ao me ver. Deu um abraço demorado nela e, com certa
naturalidade, me retirei do quarto. Do lado de fora, subi facilmente na
árvore que observara, mesmo sendo impressionantemente grande. Meu pai
apareceu: “A obra dos homens é imperfeita, filho”.
Poucas
vezes voltamos a falar sobre a prisão e meu avô por muito tempo foi
acordado por madrugadas de pesadelos estrondosos. Meu tio que foi preso
se chamava Jorge. Foi através dele que vi pela primeira vez a ditadura
militar brasileira.
Autor:João Carlos Ribeiro Jr.